Maria José Rocha Lima*
O Filme Freud Além da Alma é absurdamente atual. É um filme genial à altura do próprio legado de Freud. Produzido há 59 anos, nos EUA, por John Huston, a partir de contribuições relevantes do filósofo Jean-Paul Sartre, é um filme de uma extraordinária importância, para os que desejam verdadeiramente compreender para “além da alma humana”. Nesta breve opinião, comentarei apenas um aspecto do filme.
A abertura do filme é fantástica: “Desde a antiguidade houve três grandes mudanças na ideia dos homens sobre si mesmo. Três grandes golpes afetaram a vaidade humana.
Antes de Copérnico acreditávamos ser o centro do universo, que todos os corpos celestes giravam ao nosso redor. Mas o grande astrônomo derrubou esse conceito e fomos forçados a admitir que o nosso planeta seja apenas um dentre os muitos que giram ao redor do sol, e que há outros sistemas além do nosso em incontáveis mundos.
Antes de Charles Darwin, o homem acreditava ser uma espécie única, completamente separada do Reino Animal. Mas o grande biólogo nos fez ver que nosso organismo físico é o produto de um vasto processo evolutivo, cujas leis em nada diferem daquelas dos animais.
Antes de Sigmund Freud, o homem acreditava que o que dizia e fazia era um produto de sua vontade consciente. Mas o grande psicólogo demonstrou a existência de outra parte das nossas mentes, que funciona no mais obscuro segredo e que pode até comandar nossas vidas. Esta é a história da entrada de Freud numa região tão escura quanto o próprio inferno: o inconsciente e como ele o iluminou”.
Assim, o filme diz a que veio, desbancando o ser humano nas suas falsas crenças, denunciando as suas arrogâncias, como pensar que tem pleno controle sobre os seus pensamentos e sobre os seus atos. Discute a brincadeira de esconde-esconde, tão praticada por todos os humanos, que se nutre daquela máxima de um ex- ministro, supersincero, de que “o que é bom a gente mostra e o que ruim agente esconde”.
O filme Freud Além da Alma é para os corajosos. Para quem deseja verdadeiramente descobrir como esse gênio humano, o maior psicólogo da humanidade, se expôs e se dispôs a trazer à luz a região de escuridão que nos habita. Freud cortou sua própria carne, para iluminar esta região escura, comum a todos nós, e nos fazer compreender as origens dos sofrimentos psíquicos. Aliás, Freud confessou num dado momento da sua vida que há três impossíveis para o ser humano: “educar, governar e se autoanalisar”. Este último ele realizou, em si mesmo, corajosamente.
John Huston, a partir dos escritos de Jean-Paul Sartre, conseguiu, com muita audácia e delicadeza, pinçar da vida pessoal de Freud tudo o que interessava à Ciência Psicológica, enfim, as suas principais descobertas.
Em 1885, esta articulação começa a ser demonstrada a partir de um diálogo entre Freud e a sua mãe. Como se fosse um pedido, uma autorização à sua mãe, para ir atrás do seu sonho, do seu desejo de conhecer a alma humana.
É nessa conversa entre a sua mãe e Sig de Ouro, como ela o chamava, que ele expõe a sua dificuldade de permanecer no Hospital de Viena, sob o comando do doutor Meynert, crítico feroz da histeria e da hipnose.
A mãe de Freud o ajuda a decidir sua ida para Paris, para conhecer os estudos de Charcot. Ela indicou o caminho, dizendo-lhe: “Saia daqui vá para outro hospital”. E ele pondera: “A senhora e meu pai fizeram tantos sacrifícios”. Ela responde: “Peça uma licença. Não iria pedir quando ficou noivo?”.
Nessa bela passagem do filme sua mãe lhe pergunta onde ele poderia ir.
-Ele responde: Berlim ou para Charcot. Ela pergunta ao filho: – Charcot é um homem ou uma cidade?
Ele lhe responde: – é homem, um gênio que está em Paris. E continua falando sobre as investigações de Charcot: “Ele está conduzindo experiências sobre histeria. Há certos fenômenos mentais que desafiam todas as regras da ciência. A maioria dos cientistas se recusa a admiti-los; Charcot, não. Ele rompeu com o princípio de que pensamento e a consciência são o mesmo. Charcot provou que a mente pode funcionar durante o sono, a partir da experiência do sono induzido pela hipnose”.
E a mãe de Freud consente: Charcot.
-Por que Charcot? – pergunta Freud.
Ela responde:- Porque os seus olhos brilharam ao falar sobre Charcot.
Como nas Bodas de Cana, é a mãe que indica o caminho e o caminhar. Na despedida na estação de trem, Freud recebe da mãe um casaco para agasalhá-lo no frio de Paris e agradece-lhe, com um beijo. Lamentavelmente, o relógio oferecido pelo pai, que teria sido do seu avô, não recebeu o mesmo tratamento. Apenas um obrigado apressado, acompanhado da expressão: “um símbolo”. E ao entrar no trem, afoito, o deixa cair. O relógio teria se quebrado. E um passageiro, que se abaixa para recolhê-lo, classifica o acontecimento como infeliz.
O Sig de Ouro da sua mãe não se furtou a correr atrás do seu desejo, se lançando à própria sorte em Paris, buscando Charcot, o grande cientista dos estudos sobre histeria, deixando para trás o seu chefe de equipe no Hospital de Viena, em 1885, o doutor Meynert, com a aquiescência da sua amada mãe. Que nos dias de hoje teria dito: demorou!
Assim, Sigmund Freud, apesar das críticas de Meynert e de alguns colegas médicos da sua equipe, corajosamente não se traiu, como o fez o cientista do círculo de Viena doutor Meynert. Este já bastante adoecido convidou Freud à sua casa e confessou a sua covardia, dizendo-se arrependido “por ter feito da sua vida uma fraude”, segundo ele próprio. E ainda, identificando-se com Freud, na neurose, Meynert pediu a Freud que o traísse, que traísse a todos os que escondem a verdade e vivem mascarados, na hipocrisia e nas inibições, como fazem todos aqueles que mantêm os escorpiões guardados na caixa sem luz, na escuridão.
Quase dois séculos após as descobertas de Freud sobre o inconsciente e os seus poderes; sobre a Teoria da Sexualidade Infantil; das suas descobertas sobre o Complexo de Édipo, as críticas permanecem severas e perturbadoras. As tentativas de desqualificação de Freud continuam muito presentes. Qual a história de um gênio da humanidade que não teria ganhado uma versão cinematográfica atual, com as novas tecnologias, para ser exibida nas maiores salas de cinema do mundo, não fosse o medo de Freud e das suas ideias?
Mas, a traição de Freud aos princípios hipócritas, às inibições são vivas, penetrantes e ameaçadoras da falsa paz nas relações sociais e amorosas.Talvez, por precaução, os seus algozes, quase sempre temerosos sobre as suas revelações, que perscrutam a alma humana, continuem a pronunciar a velha e surrada afirmação: “Freud está superado”.
*Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 a 1999. É presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. É Psicanalista e dirigente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise.-ABEPP. Membro do Clube Internacional das Soroptimistas Sudoeste Brasília.