Maria José Rocha Lima
Nesses dias de guerra biológica do coronavírus acendemos a fogueira somente na memória e no coração. Lembrei-me que em Salvador, havia São João e fogueiras nos bairros populares ou em chácaras, como a da nossa prima Eunice, filha de meu tio Liberato Xisto Lima. Era muito legal irmos para o Cabula, naquele tempo, parecia uma viagem, era um lugar principalmente para nós crianças, bem distante. Havia toda uma preparação para chegarmos lá. A casa da Chácara era um sobrado antigo, bonito e em volta havia um rico pomar, cheio de pitangueiras, araçazeiros, mangueiras e só nesse dia podíamos nos lambuzar. As crianças da Casa do Alvo iam acompanhadas de alguma das primas mais velhas, minha madrinha Lilita, ou Georgina. Entre as crianças iam eu, Regininha, nossa prima, e Sueli, minha irmã. Lá encontrávamos com Gilmar um priminho sapeca e a sua irmã, que não me lembro do seu nome. A noitinha, catávamos gravetos para a fogueira e quando era acesa os nossos coraçõezinhos pulavam em festa. As comidinhas eram deliciosas: canjica de milho verde; bolo de milho, bolo de aipim, pamonha, paçoca, arroz doce, amendoim cozido, este praticamente não encontramos em Brasília, e outras delícias. Tudo com cheiro de cravo e canela. É também da tradição o quentão, mas só para os mais velhos porque era preparado com vinho. Tinha também brincadeiras de adivinhação, só para adultos, mas as crianças ficavam meio assustadas. Olhar meia noite numa bacia de água, caso o rosto não aparecesse por inteiro a pessoa iria morrer. Outra adivinhação era fincar a faca no tronco da bananeira, para descobrir a primeira letra do nome da pessoa com a qual a pessoa iria se casar. Já as brincadeiras de pular a fogueira, eram permitidas às crianças, mas apenas quando a fogueira estava acabando; e se de mãos dadas as crianças imitavam os adultos, dizendo-se comadres, a partir dali.
Há uns seis anos passei o São João em Portugal e lá, pelo menos na cidadezinha de Alcochete, onde mora minha irmã Sueli, a fogueira é em pé, com ripas que se tocam na extremidade superior. Todos se reúnem em volta da fogueira, em frente da Igreja de São João e depois seguem em romaria a pé até encontrar o Tejo, onde barcos esperam para uma romaria marítima. Embora saibamos que a fogueira teve origem nos povos do hemisfério norte, marcando o período de colheitas, nos quais se homenageavam os deuses pagãos, na nossa tradição a festa de São João, tem seu fundamento na história do nascimento de João Batista.
A fogueira era um sinal de Santa Isabel, mãe de São João, para Maria, mãe de Jesus. Dizem que Santa Isabel era muito amiga de Nossa Senhora e, por isso, costumavam visitar-se. Uma tarde, Santa Isabel foi à casa de Nossa Senhora e aproveitou para contar-lhe que dentro de algum tempo nasceria seu filho, que se chamaria João Batista.
Nossa Senhora então perguntou: — Como poderei saber do nascimento dessa criança?
— Vou acender uma fogueira bem grande; assim você poderá vê-la de longe e saberá que João nasceu.
Nesses tempos da guerra biológica do coronavírus, resta-nos cultivar as memórias dessas festas juninas, que sempre tiveram e terão um lugar especial nas tradições culturais do país e revelam muitos elementos históricos, religiosos e mitológicos curiosos, que passam despercebidos.
Maria José Rocha Lima e mestre e doutoranda em educação. Foi deputada da Bahia de 1991 a 1999. É Psicanalista filiada à Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise –ABEPP.