A Operação Calvário lançou nota sobre as acusações de manipulações de áudios lançadas pelos advogados de defesa de Ricardo Coutinho, mas sequer mencionam esse fato, que foi objeto de matéria na revista de circulação nacional Carta Capital desse final de semana.
Na nota, a Operação Calvário diz que “todas as colaborações inseridas nos processos da Operação Calvário foram homologadas“, bem como a “integridade dos áudios decorrentes destas colaborações, especificamente do empresário Daniel Gomes, foi assegurada pela perícia da Polícia Federal“.
Segundo a defesa de Ricardo Coutinho, o laudo mencionado na nota da Operação Calvário foi feito apenas em fevereiro de 2020, mais de um ano depois do pedido que levou 17 pessoas à prisão, em dezembro de 2019. Como está agora atestado pelo próprios promotores, sem qualquer laudo pericial, o que é também muito grave.
Não é isso, entretanto, que está em discussão. O que defesa do ex-governador Ricardo Coutinho contesta é a manipulação dos áudios que podem ter induzido a erro tanto o desembargador Ricardo Vital quanto a imprensa nacional que cobriu o caso.
Segundo consta na denúncia da Operação Calvário (veja página do documento logo abaixo), “RICARDO COUTINHO havia solicitado o percentual de 10% sobre esse total em propina”, o que correspondia a R$ 3,5 milhões dos R$ 35 milhões referente à compra de equipamentos para o Hospital Metropolitano de Santa Rita.
Eis a página da denúncia em que consta o trecho transcrito acima.
Notem que a Operação Calvário menciona “provas” que corroboraram o conteúdo da colaboração de Daniel Gomes e afirmam que merece “especial destaque o arquivo de áudio” em que, segundo eles, Ricardo Coutinho exige, sem nenhum constrangimento, “o pagamento de propina no percentual de 10% sobre o material/equipamento que deveria ser adquirido para o Hospital Metropolitano”.
Pois bem, como mostra matéria publicada pela revista Carta Capital, a defesa de Ricardo Coutinho submeteu o áudio mencionado pela Operação Calvário a uma análise técnica e o resultado das degravações mostraram conclusões totalmente distintas do sentido atribuído pelos promotores.
E a diferença é mesmo estarrecedora, sobretudo quando comparado com os trechos dos áudios que foram vazados para a imprensa para criar a impressão de que, os diálogos ali expostos, eram negociatas envolvendo desvios de recursos públicos.
Na matéria exibida no programa semanal Fantástico, da Rede Globo, em 22 de dezembro de 2019, um dia após Ricardo Coutinho ter conseguido no Superior Tribunal de Justiça um habeas corpus que o liberou da prisão, foi apresentado trecho de uma gravação contendo o seguinte diálogo entre o então governador Ricardo Coutinho e Daniel Gomes:
Daniel Gomes: Eu consigo trabalhar seguramente com 10%. Esse número é bem seguro.
Ricardo Coutinho: Mas, isso no início ou no fim?
Daniel Gomes: Posso fazer quando o senhor fizer a primeira entrada aqui. Eu já consigo viabilizar parte, posso adiantar.
A reportagem mostra, em seguida, imagens de Daniel Gomes em depoimento ao Ministério Público, onde ele afirma que 10% era o percentual da propina que deveria ser repassada a Ricardo Coutinho e a “seus comparsas”.
No entanto, quando lemos a totalidade da transcrição do áudio fica claro que os trechos da reportagem do Fantástico foram retirados do contexto para atender a interesses persecutórios contra o ex-governador.
A conversa começa com a entrada de Daniel Gomes na sala de Ricardo Coutinho. Após breves amenidades, Daniel Gomes vai direto ao assunto que o levou ao encontro de Ricardo Coutinho:
Daniel Gomes: Sei o que senhor tá a mil por hora, vou tentar ser sucinto aqui. Eu tô uns dois meses com aquele levantamento lá do metropolitano, eu fui dando pra Cláudia [Veras, então Secretária de Saúde] alguns dados, acho que ela já lhe trouxe.
Ricardo Coutinho: É.
Daniel Gomes: Mas aquela parte, eu tinha que falar com o senhor, então a doutora Livânia, aí ela agendou pra hoje.
Ricardo Coutinho: (incompreensível) de custo, de, de parcelamento aí.
Daniel Gomes: Então, já aumentei, já aumentei pra ela, tá? Na realidade, governador, o seguinte, só lhe mostrar que aí, bem objetivo, tá? Eu consegui alongar o parcelamento até junho de dezoito [2018], tá? O primeiro que eu tinha baixado pra ela era mais curto, então mostrei pra junho. Se o senhor falar que tá apertado, eu vou dar um jeito de esticar um pouco mais, aí o senhor tem que me dizer. O principal pra mim é sempre o início, que tem alguns equipamentos que eu tenho que dar de entrada, as entradas iniciais. Isso aqui é um cenário pessimista e esse aqui é o cenário otimista. Eu só consigo ter a exata ideia do valor, isso aqui é pra fazer a forma escalonada, né? Total do hospital, ele inteiro ia dar 50 e poucos milhões, 55, a gente tá trabalhando com o total de leitos de 5% e 35 leitos. Então isso aqui foi até um sumário que eu dei pra Claudia...
Ricardo Coutinho: Precisa de muito, muito, muito, muito leito.
Esse contexto dos diálogos, que foi propositadamente omitido da transcrição feita pela Operação Calvário, demonstra claramente que o que estava sendo discutido eram os custos do hospital, mais especificamente o valor da entrada inicial que o Governo do Estado teria que disponibilizar para que fossem adquiridos os primeiros equipamentos daquela unidade. Esses custos ficariam em torno de 10% do valor do total da despesa efetuada.
Veja como foi o diálogo quando chega a parte em que são mencionados os tais 10% e notem que eles adquirem um sentido bastante diferente:
Ricardo Coutinho: E essa… planilha [dos equipamentos], quanto mais se esticar, quer dizer, aí eu tenho capacidade de responder.
Daniel Gomes: Não tá, mas aí é basicamente o feedback seu pra mim disso. É, é possível, eu consigo fazer, de um jeito ou de outro. Eu só não consigo financiar são os itens pequenos, mas os itens pequenos, governador, se eu tiver três milhões de reais, eu compro todos os pequenos. O resto todo eu consigo parcelar. Agora, quanto mais eu pagar à vista eu consigo melhor preço, essa é a única vantagem. Eu consigo melhorar a composição de custo. Tá. E aí, o que que muda, por exemplo? Então, por exemplo, nesse cenário aqui, eu tô com os dois cenários, tá? Então essa aqui é a que seria a conta pra gente, está certo? Eu consigo, é eu até botei aberto aqui pro senhor ter uma ideia de custo, de frete, de imposto de importação que eu consigo depois reverter, então eu consigo trabalhar seguramente com 10%, esse é um valor, é bem seguro, tá?Acho que eu consigo mais do que isso. Acho que há possibilidade de eu conseguir ainda mais do que isso, mas eu só vou ter certeza disso quando eu soltar os percentos de compra. Mas esse valor aqui é seguro. Eu lembro que o senhor tinha pedido isso, então esse é o valor que eu consigo.
Ricardo Coutinho: Mas esse no início ou no fim?
Daniel Gomes: No fim. Na realidade, eu posso fazer quando o senhor fizer a primeira entrada aqui, eu já consigo viabilizar parte, posso adiantar, com a gente não, não tem problema. Desde que o senhor me garanta que eu vou ter esse fluxo pra frente…
Como é possível constatar, é gigantesca a diferença entre o que foi divulgado e que consta na denúncia da Operação Calvário ao desembargador Ricardo Vital, e o que foi realmente conversado ― e está registrado em gravação. Na forma como foram divulgados, esses diálogos induziram os telespectadores a acreditar que se tratava de uma negociata envolvendo propinas, quando, na verdade, o que estava em discussão eram os valores necessários para custear “itens pequenos” para o Hospital começar a funcionar, eque seriam pagos à vista, apenas para que fosse possível baixar os custos do hospital.
A nota da Operação Calvário deveria ter tratado dessas evidentes manipulações. Mencionar formalidades do processo não responde as dúvidas que toda a sociedade agora tem, incluindo o próprio Judiciário, sobre procedimentos de procuradores que deveriam primar pelo respeito à lei.
Nenhum cidadão deve ser tratado como inimigo do Estado.