*Frutuoso Chaves
Atendia por Júlio. Na verdade, por Júlio Branco para não responder pelo xará de pele escura, o Júlio Preto. À véspera do Natal, chegou ao balcão e pediu: “Põe uma para mim, que depois eu pago”. Não pagaria, como nunca pagou as inúmeras outras doses que tomou, fiado em dias melhores e na comiseração dos despachantes. Naquela manhã, eu era um deles, no bar com que meu pai, tempo depois, findaria a carreira de comerciante, um tanto longa e amarga.
Busquei com os olhos a garrafa da “papuda” e logo os desviei para uma aguardente de melhor qualidade, mais acima, na prateleira. O Natal faz coisas como essa: amolece os corações. Além disso, eu me deliciava, cada vez mais, com a convicção daquelas promessas de pagamento. O infeliz as proferias com todas as certezas do mundo.
Emborcou o copo e fez deslizar pela goela a melhor caninha das redondezas. Depois, de cabeça erguida, pálpebras cerradas, exibiu o ar de satisfação de quem estivesse a viver o momento mais sublime daquela existência miserável. “Veludo, veludo”, resumiu, assim, a maciez daquilo que lhe ia ao bucho e à alma. “Feliz Natal, Júlio”, disse-lhe antes que pusesse os pés na calçada. De costas, sem se virar para mim, acenou com um dos braços e sinalizou um “positivo” com o polegar. E se foi..
Somente soube dele dias depois, quando Seu Oscar, não o do motor da luz nem o da loja, mas o Seu Oscar daquele arremedo de funerária, despachava o caixão encomendado pela Prefeitura. Júlio morrera sem uma reza, sem uma mão amiga a acender a vela que muitos supõem capaz de iluminar o caminho dos espíritos. Acharam-no encolhido num cantinho do Pavilhão Público onde se acostumou a pernoitar. À volta, nada de seu à exceção de uma esteira e um lençol, tudo limpinho como, de resto, a roupa que vestia. Era este o único trabalho que dava à irmã casada: os cuidados com a vestimenta surrada e desviada, no mais das vezes, do cunhado que não o suportava.
Poucas vezes vi, no início da minha adolescência, um enterro com tão grande acompanhamento. Era como se o pobre homem houvesse adquirido, depois de morto, todas as considerações que em vida o mundo lhe negara.
Ninguém nasce ébrio. Tampouco Júlio. Pintor de mão cheia – de fachadas e letreiros, embora arriscasse uma ou outra tela com mar e sol, paisagens improváveis à vida naquelas auroras distantes do Atlântico – ele chegou a tentar a sorte no Rio de Janeiro. Foi de lá que voltou com o corpo e a alma em petição de miséria. Contam que sucumbiu às traições de uma mulher.
Em Natais anteriores, aquela cara inchada e vermelha adquiria, momentaneamente, ânimo e ares novos, por conta da fantasia inflada de algodão para disfarçar a magrez, antes da distribuição de presentes a meninos pobres da Serventia e Rua da Lagoa. Era seu grande momento: o Júlio, pobre de Jó, de vida desgraçada, a entregar brindes a torto e a direito, mesmo que fossem custeados pelo cofre municipal que agora lhe fornecia o ataúde roxo como suas olheiras.
Seu estado de embriaguês se acentuara a ponto de dona Felícia, a Secretária do Prefeito negar-lhe, no ano em curso, o posto de Papai Noel. “Não se faz uma malvadeza dessas. Ele morreu de desgosto”, eu ouvi a negra Jacira comentar com minha mãe. E, de repente, me ocorreu que uma cidade inteira, compadecida, desagravava o pobre diabo. O Padre, sempre turrão, abriu a Igreja para o velório e as pessoas dali ainda saíam quando o caixão, a caminho do cemitério, já passava em frente ao bar onde servi a Júlio o melhor trago que ele, possivelmente, já provara.
Ah, eu quase me esquecia de contar: no ano seguinte, o candidato apoiado pelo prefeito perdeu as eleições. (Ilustração pinçada da intenet).
**Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife