Miguel Lucena
Por mais que muita gente se esforce para negar a realidade, não dá para aceitar que a abordagem truculenta a Luiz Carlos da Silva, 56 anos, de cor preta, por seguranças do atacadista Assaí/Extra, em Limeira/SP, não tenha sido motivada por preconceito racial.
Várias pessoas entraram no supermercado e saíram sem comprar nenhum produto, mas somente o negro foi abordado. Um suspeito em potencial. Antes de ser levado a um canto escuro, Luiz se despiu completamente, por precaução, para provar sua inocência.
Esse comportamento não é ruindade dos seguranças, é algo que foi sendo colocado na cabeça das pessoas ao longo do tempo, nos 300 anos de escravidão negra e depois, com as teorias sobre as tendências criminosas das classes perigosas.
Nos Estados Unidos, durante e após a escravidão, criou-se a lenda do negro estuprador de donzelas brancas.
No Brasil, dos ditados populares à literatura de cordel, o negro sempre foi retratado como a “imagem do Cão”, como vemos na obra “Imagem do Cão – o negro na Literatura de Cordel”, de Miguel Lucena e Maria José Rocha Lima:
“Afinemos os instrumentos/Entremos em discussão. O meu guia disse a mim: o negro parece o Cão, tenha cuidado com ele quando entrar em questão!”, diz o Cego Aderaldo no início da peleja com Zé Pretinho do Tucum, famosa cantoria mencionada até por Rachel de Queiroz.
Benedito, negro e “criado” do pai do poeta Jorge de Lima, autor de Essa Negra Fulô, era chamado de diabo. O drama dele foi exposto quando o poeta tinha 8 anos de idade:
“Benedito, criado de meu pai,
A ele chamam diabo
Por ser preto esse rapaz.
Mas Benedito é meu amigo.
Por isto eu o Bendigo
E lhe digo muito ancho:
Benedito, você é um anjo”. (ESPINHEIRA, 1990, p. 63).
A associação entre o negro e o Diabo em versos também é citada pelo sociólogo Florestan Fernandes:
“O branco é filho de Deus,
O mulato é enteado,
O cabra não tem parente
E o negro é filho do diabo” (FERNANDES,1972, p. 207).
“Coisa do cão”, assim o pai de Lucas da Feira definiu o filho recém-nascido. Negro, Lucas “fez o maior reboliço” no “bucho” da mãe, igualmente negra:
“No momento que nasceu,
Berrou no bucho da mãe
Que a terra estremeceu,
Deu um chute na barriga,
Já com instinto de briga
Que o destino lhe deu”.
O poeta popular Erotildes Miranda dos Santos (1982) apresenta o baiano Lucas da Feira como um predestinado ao crime, razão por que o pai reagiu dizendo ser “coisa do cão”.
Filho de escravos, Lucas não foi absolvido pelo poeta nem quando salvou 25 negros da morte. Eles seriam executados pelo Dr. Jivan, dono de engenho de escravos, de quem fez “picadinho”. Foi tratado como ladrão, assassino, estuprador e professor de bagunça. Todos viviam assombrados “com medo do negro Lucas e do seu grupo malvado”.
Sem alma e coração, “coisa do cão”, Lucas também torturou:
“Certa vez ele pegou
Um tal de Chico Petu,
Tirou a roupa do cabra,
Deixou o sujeito nu
E depois, dando risada,
Fez dar muita umbigada
Num pé de mandacaru.
E depois ele pegou
O João de Nicolau,
E, com um prego caibrar,
Pregou o beiço no pau
E lhe disse eu vou ali,
Se te encontrar aí,
Tu vais ver como sou mau”.
Depois, as pessoas ficam se perguntando “como é que pode” haver racismo em pleno século XXI.