O Brasil é, para quem exercita o autoengano, um país tropical e abençoado por Deus. Inventaram, até, que o Criador nasceu aqui, mesmo que a evolução tenha chegado antes a outras partes do mundo. Na realidade, o Brasil é mesmo um país violento, repleto de mortandade.
O Atlas da Violência do Ministério da Saúde, divulgado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), mostra que o Brasil registrou 62.517 mortes violentas em 2016, superando o patamar de 30 homicídios a cada 100 mil habitantes. O número corresponde a 30 vezes a taxa de assassinatos na Europa, onde a crise econômica também se faz presente.
O que faz do Brasil um país violento? Por que pretos e pardos são os mais atingidos? Qual o papel do autoengano na não-resolução dos problemas?
O autoengano nos impede de enxergar a realidade e encontrar soluções para todos os problemas, especialmente o da violência. Se somos especiais, cordiais e alegres, bons de bola e carnaval, com uma natureza esplêndida e encantos mis, o que nos falta?
Essa visão de mundo nos faz empurrar os problemas com a barriga. “Hoje, só amanhã”, costumam dizer os baianos. Sempre que acontece algo grave, saltam paladinos enchendo a veia do pescoço e os mesmos somem na mesma velocidade em que apareceram, logo que as coisas se acalmam. O assunto morre. Põe-se uma pedra em cima. Águas passadas não movem moinhos.
A maioria das mortes ocorre entre criminosos. São acertos de contas. Delinquentes comuns ou a serviço do Estado. Tanto faz. Bandido é bandido. O Judiciário, preocupado com seus auxílios, fecha os olhos, trata os criminosos como vítimas da sociedade, ninguém cumpre pena integralmente no Brasil, os presídios foram tomados pelo crime estruturado, as quentinhas dos presos viraram negócio milionário, a lavagem de dinheiro corre solta, os apartamentos dos políticos sujos vivem abarrotados de dinheiro do crime, enquanto a violência campeia para deixar o povo apavorado e sem enxergar a ladroagem dos de cima.
Pretos e pardos são os mais atingidos desde o início da nossa história e assim continuam porque são os mais pobres na escala social. Vivem em guetos, favelas e bairros sem estrutura. É nessas vielas que os bandidos comuns se escondem, guardam as drogas que lhes foi fornecida pelos grandes, saem para cometer delitos no corpo a corpo e por isso são presas fáceis para o policiamento ostensivo, razão pela qual as cadeias também estão abarrotadas de pretos e pardos.
O Brasil só vai ser um país sério quando se desenvolver sem roubar, criar oportunidades para a maioria no mercado de trabalho, diminuir a pobreza, valorizar a investigação qualificada, em vez de sucatear as Polícias Civis e Federal, modificar as leis processuais e de execução penal (para acabar com as benesses e colocar os presos para ganhar seu sustento com o suor do próprio rosto), banir os privilégios de castas do serviço público e combater a corrupção.
*Miguel Lucena é Delegado de Polícia Civil do DF, jornalista e escritor