Maria José Rocha Lima*
“O mundo não é o lugar onde você está, mas o lugar onde ficou o seu coração. Coração não viaja! O meu, por exemplo, está no Jatobá… “
Em epígrafe, esta belíssima declaração de amor do escritor e advogado paraibano Irapuan Sobral Filho à sua cidade de origem, Jatobá. Uma homenagem tão rara nos dias atuais é, quase, mitológica e lembra os filósofos gregos.
A obra de Irapuan Sobral Filho em homenagem à sua polis guarda tanta beleza e sensibilidade que transcende as dimensões físicas e cognitivas, nos elevando a uma dimensão espiritual. Demétrius Faustino, que fez o prefácio, captou, com maestria, esta que considero uma das mais notáveis características da obra a sua percepção “noética”. Ele considerou Irapuan um artesão na arte que, segundo ele, Voltaire chamou de “Pintura da Voz” e que eu quase adulterei, considerando-o de “pintor de palavras”. A expressão escrita, pintada, lírica de Irapuan é única, é singularíssima. Causa muita emoção e espanto!
A primeira crônica, intitulada Procissão, conta a fundação de Jatobá. Os poucos habitantes que restavam de Piranhas Velha, “como pedaços de gente”, fogem com medo de ser devorados pelo rio, deixando a terra efetivamente sem habitantes. Eu fiz uma viagem para o Jatobá, me assustei com a inundação provocada pelo rio, me vi na Procissão dos Jataboenses, caminhando em fuga da enchente, deixando para trás Piranhas Velha. A linguagem chega a teatral, dada à expressividade, o que exige talento para a leitura, e emudeci.
Tudo seria mais triste não fosse a união dos ex- moradores de Piranhas Velha e a companhia do Divino São José. Os benditos e “incelências”, me lembraram a Ilíada e a Odisseia gregas, que cumpriam papel, um tanto, semelhante.
Um deslocamento, uma fuga, contada com tanta doçura que fizera São José chorar, não porque o Santinho estivesse se lamuriando, é claro, mas para lembrar que há sentido no sofrimento.
As primeiras páginas da obra me remeteram fortemente ao espírito da Paidéia Grega. A Paidéia buscava uma formação elevada do ser humano e um sentimento de civilização fortemente fincada na memória. Por isto, era pedido ao jovem e ao homem grego: “nunca esqueçam quem eram e nunca esqueçam de onde vieram.” E o nosso autor não esqueceu de onde vieram os jataboenses e quem o contara toda aquela história: Pedro Domiciano.
Durante a procissão fundadora de Jatobá ninguém deveria olhar para trás, conforme recomendado no episódio bíblico. Mas isto é muito diferente de esquecimento do passado. Uma das faculdades psíquicas mais desprezadas nos nossos tempos. Diferentemente dessa condenação do passado, do desprezo pelo passado tão recorrente, inclusive nas escolas onde memorização é sinônimo de anacronismo, Irapuan quer (re) lembrar o passado. Ele faz questão de relembrar a fundação da sua mítica Jatobá. Ele rememora a travessia difícil, mas altamente significativa, das pessoas que em procissão fundaram a cidade. Os fundadores de Jatobá seguiam o pontífice, que segundo os filósofos faz uma ponte entre o céu e a terra, embora pudessem prescindir deste, uma vez que São José estava ali, presente.
Todos estavam cansados e uns poucos se distraíam com assombrações, maus presságios, mas nesses momentos os mais fortes se aproximavam, ainda mais. Eram aqueles que buscavam o cumprimento do propósito a que se destinavam. Estes buscavam o aretê, que era para os gregos a virtude, o heroísmo, a excelência, a disciplina, a ordem, a vontade de sentido para chegar lá.
A Procissão é o mito fundador da Jatobá do escritor Irapuan Sobral, como a primeira missa, sob o signo da Cruz, foi para o Brasil. Jatobá nasce da Procissão de homens e mulheres de fé, corajosos, que a têm como um mito. E têm como padroeiro São José, o qual, como conta Pedro Domiciano abriu os olhos para conferir a beleza do lugar, rendendo bênçãos àquela gente, e desde então nunca mais dormiu!
Irapuan Sobral, um “casca finíssima” da literatura e poesia, sem evitar a dor, rememora o mito fundador de Jatobá, como nos recomendam os grandes filósofos da humanidade.
Boa leitura.
*Maria José Rocha Lima é mestre em educação pela UFBA e doutora em psicanálise. Foi deputada de 1991 a 1999. É presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. É da Organization Soroptimist International- Brasília Sudoeste. Sócia Benemérita da Hora da Criança.
Sinto-me insuficiente para guardar crítica tão autorizada e ‘telúrica’ (porque arrancada do fundo da existência). Agradecer não é bastante à responsabilidade em estar sob uma análise assim.
Merecerei!? Não sei. Mas não a esquecerei.