STJ reconheceu fragilidade de investigação, que se sustentou em fotos retiradas da rede social e depoimento da vítima
A vida de Romário Santos de Jesus (foto principal), 25 anos, começou a mudar em 2018, quando recebeu uma intimação obrigando-o a comparecer à 11ª Delegacia de Polícia (Núcleo Bandeirante). O jovem, que à época trabalhava como estoquista na Ceasa, passou a ser apontado como principal suspeito de roubar o celular de uma mulher próximo à estação BRT, no Park Way, em 31 de maio do mesmo ano.
A investigação, que teve como base o reconhecimento, pela vítima, de uma foto de 2015, postada nas redes sociais de um dos suspeitos, foi suficiente para condenar o rapaz por um crime que ele não cometeu.
Em entrevista ao Metrópoles, Romário de Jesus lembra que estava em casa após uma longa jornada de trabalho quando um agente de polícia o informou que ele teria de prestar depoimento. “Não tenho passagem pela polícia, sequer fiquei em delegacia, sempre fui trabalhador. O único lugar que eu ainda saía, além do trabalho, era para o campinho jogar bola com meus amigos ou ministrar aulas de capoeira para a comunidade. Fiquei completamente surpreso ao receber a intimação e quis logo resolver”, lembrou.
O jovem apresentou-se à unidade policial. Mesmo alertado sobre o direito de permanecer em silêncio, Romário fez questão de responder a todos os questionamentos. Os investigadores haviam identificado o receptador do aparelho celular. Faltava, entretanto, chegar ao autor do roubo.
Os agentes mostraram para a vítima uma foto retirada de um perfil na rede social do receptador. A imagem, divulgada em 2015, mostrava o suspeito ao lado de Romário. A mulher confirmou e reconheceu o jovem como autor do roubo. Acrescentou que o crime foi cometido com auxílio de um adolescente.
Em depoimento, no entanto, a vítima não soube relatar muitas características dos envolvidos. Apenas narrou que foi abordada por dois homens em uma bicicleta. Disse que um negro puxou o celular, enquanto o outro, a bolsa. Sobre a foto de Romário, ela alegou que a imagem parecia familiar.
“Confirmei aos policiais que conhecia o suspeito de receber o celular, mas alertei que não tinha contato com ele há muitos anos, exatamente por saber que tinha se envolvido com a criminalidade. Todas as vezes que me requisitaram na delegacia, eu fui e prestei todos os esclarecimentos”, contou Romário.
Medo
Durante a audiência na Justiça, em 2019, a vítima voltou a afirmar, com base na fotografia, que o assaltante era Romário. Entretanto, ponderou que poderia ter sido influenciada a pensar que era ele, pois já sabia que a outra pessoa que aparecia na foto era o receptador.
Ao fim da audiência, o juiz determinou a absolvição. “A palavra da vítima não está amparada em nenhum outro elemento probatório (tal qual o interrogatório do réu), de modo que é insuficiente para ensejar a condenação”, diz a sentença.
Na segunda instância, no entanto, a situação mudou. “Um inocente foi submetido ao processo penal com provas ancoradas apenas em reconhecimento por fotografia. Na primeira instância, conseguimos provar a fragilidade da investigação, e ele foi absolvido. Entretanto, quando o caso foi para a segunda instância, a desembargadora concluiu que o depoimento da testemunha era válido e Romário acabou condenado por roubo majorado por concurso de pessoas e corrupção de menor”, explicou o advogado do jovem, João Henrique Lippelt Moreno.
Com o risco de ser preso por um crime que não cometeu, Romário de Jesus saiu de Brasília e passou a morar com familiares no interior da Bahia. “Eu tinha um emprego e tive de sair sem falar nada. Minha família ficou apavorada, minha maior preocupação era a minha mãe. Senti medo, ia pagar por algo que não fiz. Nunca tive problema com a Justiça, mas a única saída que encontrei foi fugir até a situação se resolver”, destacou o jovem.
STJ
O advogado de Romário recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que reconheceu, neste ano, a fragilidade da prova que culminou com a condenação e decidiu absolvê-lo.
Segundo a ministra Laurita Vaz, “as provas que fundamentaram a conclusão do Tribunal local não se mostram suficientemente para embasar lastrear juízo condenatório, motivo pelo qual se impõe o restabelecimento da sentença de absolvição do paciente.”
De acordo com Laurita, o magistrado de primeiro grau – mais próximo dos fatos e das provas –, ao proferir seu juízo absolutório, consignou que “não houve prisão em flagrante, não há outras testemunhas e a res furtiva não foi encontrada na posse do denunciado”, e que “a palavra da testemunha ouvida apenas refere a da vítima, porque não presencial”. Portanto, a ministra destacou que a condenação pela Corte local estava embasada, fundamentalmente, no reconhecimento fotográfico do réu pela vítima.
“Vale também referir que o único outro testemunho em Juízo foi prestado pelo agente de polícia, o qual esclareceu ter localizado o adolescente que adquiriu o telefone celular produto do roubo, sem constar nos autos, todavia, que a res foi vendida pelo paciente. No mais, é certo que o depoente compromissado informou, ainda, que extraiu fotos do paciente na rede social Facebook para o reconhecimento fotográfico. Todavia, não indicou nenhuma fonte material independente de prova diversa”, finalizou a ministra.
O advogado João Henrique Lippelt Moreno alerta para a fragilidade de algumas investigações e acrescenta que o Código de Processo Penal (CPP) não cita expressamente o reconhecimento fotográfico, mas que medidas básicas deveriam ser adotadas pelos investigadores. “Uma investigação pode acabar com a vida de alguém. Sabemos que dificilmente um jovem branco de classe alta seria confundido com assaltante. Espero que esse caso sirva de alerta e que jovens que se encontram na mesma situação possam conseguir justiça”, destacou.
Outro caso
Em fevereiro deste ano, a 6ª Turma do STJ absolveu um homem acusado de roubo a uma residência em Macaé (RJ) devido à falha no processo de reconhecimento fotográfico do suspeito. Para o colegiado, o reconhecimento não seguiu as formalidades mínimas exigidas pelo artigo 226 do CPP.
As vítimas disseram ter identificado o suspeito no vídeo que registrou outro roubo na vizinhança, dias depois. Na sequência, fizeram o reconhecimento na polícia, por meio de fotografia, mas não o confirmaram em juízo.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) manteve a sentença condenatória e fixou a pena em sete anos. O pedido de absolvição da defesa foi negado sob a justificativa de que o não reconhecimento pessoal do acusado em juízo seria compreensível diante do longo tempo decorrido entre o roubo (2014) e a audiência (2019).
Segundo o relator do habeas corpus impetrado no STJ, ministro Nefi Cordeiro, a fundamentação da condenação – embasada somente em reconhecimento fotográfico, não confirmado em juízo nem corroborado por outras provas – não se mostra suficientemente robusta, sendo cabível a absolvição do réu, conforme precedentes do tribunal.
O ministro destacou julgado da 6ª Turma, segundo o qual o reconhecimento falho, que não cumpra as exigências do artigo 226 do CPP, é imprestável para embasar uma eventual condenação. Segundo ele, o reconhecimento fotográfico deve ser apenas uma etapa antecedente ao reconhecimento presencial, não podendo servir como prova no processo.
Ao conceder o habeas corpus e absolver o réu, Nefi Cordeiro concluiu que, “inexistindo outros elementos suficientes, mormente porque no sistema acusatório, adotado no processo penal brasileiro, é ônus da acusação provar que o denunciado praticou as elementares do tipo penal, cabível a absolvição, consoante a jurisprudência desta corte”.