Maria José Rocha Lima
Defrontei-me, nas redes sociais, com as costumeiras discussões sobre as pessoas capturadas pelas ideias do mal, ponerologizadas. “Poneros” significa, em grego, o mal, cujo estudo é feito pela Ponerologia. Vi que o amigo delegado Wisllei Salomão, no Facebook, parecia compartilhar as mesmas perplexidades que eu, e me determinei a conversar sobre a questão.
Essa era uma questão, meio tabu, que muito me inquietava, pois desde os 12 anos de idade havia me associado às organizações de esquerda. Primeiro, no curso ginasial, ingressei na luta contra a Lei Orgânica do Ensino, estimulada pela minha mãe Dona Terezinha, meio canhotinha, admiradora de Fidel; depois fui influenciada pelo Movimento pela Emancipação Proletária – MEP -; na universidade, fui recrutada pelo PCdoB e, por último, ingressei no PT, entre tapas e beijos. Por ser um partido com o qual tinha muitos embates ideológicos e na área sindical, nunca houve entre nós uma relação de total confiança. Mas o PT foi a alternativa que me restou, depois de divergências com os comunistas. Confesso que não é fácil romper com essas ideias e organizações. É tão e mais difícil do que concluir um processo de divórcio litigioso, com alguém ameaçador, depois de décadas de casada e com filhos. No partido, em lugar dos filhos, há“os comparsas”, como diz em tom de brincadeira e para me chatear a amiga Iara Bernardi, vereadora do PT em Sorocaba e ex–deputada federal.
O rompimento com a esquerda foi um longo processo, especialmente depois que fui eleita a deputada mais votada da oposição, numa eleiçãooutside. Desde aquela época, na Bahia, na década de 90, declarei as primeiras divergências, me dediquei aos estudos acadêmicos e às leituras sobre a atuação dos partidos comunistas e socialistas e descobri práticas terrificantes, começando por estudos sobre o Leste Europeu, a antiga URSS e a queda do Muro de Berlim. Desse modo, comecei a entender a queda dos regimes e o fracasso dos ditos comunistas e socialistas, pelo mundo afora: a miséria na Albânia; os graves problemas de autoritarismo na Nicarágua; fui a Cuba e voltei decepcionada, trazendo comigo um rico acervo de fotos de uma visita guiada a um manicômio, motivo de gozação por Miguel Lucena e amigos, durante um bom tempo. Finalmente, deparei-me com o terror das armas químicas e outras práticas tenebrosas do Kadafi, como chamávamos: Muammar –al – Gaddafi, o ídolo do médico comunista e meu amigo baiano Xeroqui. O Kadafi aboliu a Constituição da Líbia e se constituiu governante por 42 anos. Foi denunciado por enriquecimento ilícito, dizem que chegou a acumular uma fortuna de 200 bilhões de dólares e era o Líder Fraternal e Guia da Revolução da Líbia (1969-2011), mais tarde Presidente do Conselho Revolucionário da Líbia e Chefe da Grande Revolução JamahirIya Popular Socialista da Líbia. A ele foram atribuídos os financiamentos de grupos terroristas, do Grupo Panteras Negras e do Setembro Negro, que assassinou sete atletas nas Olimpíadas de Munich. Além disso, mantinha um harém de adolescentes e jovens que escolhia nas escolas da Líbia, sem o consentimento dos pais, que eram mortos se recusassem o recrutamento sexual.
Finalmente, eu já constatava a naturalização do mal: que os fins justificavam os meios e assim por diante. Nessa época, entrei em contato com as ideias de Hannah Arendt (1906-1975), teórica política alemã, em seu livro Eichmann em Jerusalém, cujo subtítulo é “um relato sobre a banalidade do mal.”
Em 1961, 15 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciou-se em Israel o julgamento de Adolf Eichmann, por crimes de genocídio contra os judeus. O julgamento foi muito polêmico, e as sessões foram cobertas por quase todos os veículos de comunicação do mundo, que enviaram correspondentes, e Hannah Arendt foi uma dessas presentes ao julgamento, como enviada da revista The New Yorker.
Além de crimes contra o povo judeu, Adolf Eichmann foi acusado de crimes contra a Humanidade e de pertencer a uma organização com fins criminosos. O réu se declarou “inocente no sentido das acusações”. No entanto, foi condenado por todas as 15 acusações que pesavam contra ele e enforcado, em 1962.
A partir de suas observações sobre o comportamento da sociedade alemã e da frieza de Eichmann durante o julgamento, Hannah Arendt constatou que há momentos na história da humanidade de maior intensidade, de uma dor coletiva, nos quais ocorre uma espécie de ataque coletivo, o que eu chamo de um ataque epiléptico, do qual se aproveitam as mentes totalitárias.
A filósofa defende que, “como resultado da massificação da sociedade, se criou uma multidão incapaz de fazer julgamentos; são formadas pessoas para cumprirem ordens sem questionamentos”.
Em 2006, estive acompanhando as discussões na Rádio e Televisão de Portugal – RTP – sobre a banalidade do mal, nas quais pontuavam que Hannah Arendt se deparou com “a insuficiência das teorias e categorias científicas, econômicas e políticas tradicionais para captar e explicar esses fenômenos, nos quais o domínio das mentes é mais opressor que a escravidão e a tirania; é mais destruidor que a miséria econômica e o expansionismo territorial”. Assim, ocorre o controle total das mentes e a busca pela sua captura, adotando como critério de legitimidade o governamental.
Percebemos que os comunistas e socialistas vêm até mesmo realizando a reciclagem das massas, quando os regimes fracassaram economicamente, gerando miséria, milhões de mortes por fome, exaustão no trabalho, desemprego e estagnação, perdendo o apoio da classe operária, que sonhava com o paraíso; partiram para a captura de grupos que denominavamlumpen proletariat (do alemão Lumpenproletariat: ‘seção degradada e desprezível do proletariado’, de lump ‘pessoa desprezível’ e lumpen ‘trapo, farrapo’ + proletariat ‘proletariado’) ou lumpesinato, ou ainda subproletariado, no vocabulário marxista, a população situada socialmente abaixo do proletariado, do ponto de vista das condições de vida e de trabalho, formada por frações pobres, não organizadas do proletariado, não apenas destituídas de recursos econômicos, mas também desprovidas de consciência política e de classe. Passaram a atrair e recrutar segmentos antes desprezados e até assassinados naqueles regimes autoritários, como prostitutas, travestis e delinquentes.
A obra Ponerologia também pode responder a toda essa onda avassaladora de insanidades e defesa do mal, como se fosse o bem; inversão de valores e confusão, para reinar, que temos assistido no Brasil. As mesmas perguntas de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal entre os nazistas foram feitas por psiquiatras, médicos, psicólogos e estudantes de Medicina sobre os dirigentes comunistas nos seus países.
Mais recentemente, o psicólogo polonês Andrew Lobaczewski (1921- 2007) reuniu as notas de 60 anos estudos e publicou em 2006, no Canadá, e em 2014, no Brasil, sob o título: Ponerologia: Psicopatas no Poder, com tradução de Adelice Godoy.
Esses estudos, realizados na Hungria, Chesclováquia e Polônia, são apenas uma parte das pesquisas que mostravam que “O mal era o traço dominante no caráter dos dirigentes, que davam o modelo de conduta para o resto da sociedade, isto representava inequivocamente a psicopatia”.
Para efeito didático, resolvi aproveitar prefácios e resenhas, nas quais são destacadas as principais descobertas do doutor Andrew Lobaczewski e seus colaboradores: 1) que só uma “classe de psicopatas” tem a agressividade mental suficiente para se impor a toda uma sociedade por esses meios; 2) descobriram que, quando os psicopatas dominam, a insensitividade moral se espalha por toda a sociedade, roendo o tecido das relações humanas e fazendo da vida um inferno; 3) descobriram que isso acontece não porque a psicopatia seja contagiosa, mas porque aquelas mentes menos ativas que, meio às tontas, vão se adaptando às novas regras e valores, se tornam presas de uma sintomatologia claramente histérica, ou histeriforme. E o histérico não diz o que sente, mas passa a sentir aquilo que disse – e, na medida em que aquilo que disse é a cópia de fórmulas prontas espalhadas na atmosfera como gases onipresentes, qualquer empenho de chamá-lo de volta às suas percepções reais abala de tal modo a sua segurança psicológica emprestada que acaba sendo recebido como uma ameaça, uma agressão, um insulto. Só assim é possível entender como pode um “pequeno grupo de psicopatas, da elite dominante”, alastrar ideias do mal e destruir as bases fundadoras de uma nação.
Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada da Bahia de 1991 a 1999. É fundadora da Casa da Educação Anísio Teixeira.