Maria José Rocha Lima*
O reinado do coronavírus é um duríssimo golpe na educação brasileira, que já apresentava baixíssima qualidade. O que já estava muito ruim pode piorar. Esta impossibilidade de frequência à escola poderá ter um impacto devastador sobre os alunos das classes populares. As matrículas nas escolas públicas afetam diretamente 57 milhões de brasileiros. Isto é, mais de ¼ da população do país.
Em maio de 2018, o ex- ministro Rossieli Soares apresentou na Comissão de Educação do Senado um panorama da educação brasileira altamente preocupante. Na ocasião, ele celebrava a existência de 57 milhões de matrículas na rede pública, mas denunciava a baixíssima qualidade do Ensino Público, apontando entre as causas o alto percentual de docentes com formação inadequada, variando de 30% a 40%. E metade dos professores de Matemática não tinha formação para a área, de acordo com os dados do INEP de 2017.
O ex – ministro informou, também, que em 2017 mais de 50% das crianças não estavam alfabetizadas no terceiro ano do ensino fundamental e mais de 370 mil foram reprovadas ou abandonaram a escola em 2016. No Norte e Nordeste, esse percentual chegava a 70%.
No 6º ano, somente 82,8% foram aprovadas, mais de 570 mil foram reprovadas ou abandonaram a escola em 2016. Na 1ª série do ensino médio, em 2016, 791 mil jovens abandonaram a escola ou foram reprovados, isto representava 25,9%. Sem contar que 2,2 milhões de jovens encontravam – se em situação de defasagem idade-série no ensino médio, segundo fontes do INEP/MEC.
A tragédia do aumento do abandono escolar, da reprovação ou aprovação automática, sem aprendizagens, está anunciada. Isto é o que deverá ocorrer para a grande maioria dos estudantes das classes populares, sem a possibilidade de frequência à escola e sem outras opções. Diferentemente dos alunos das classes médias e alta, que têm equipamentos sofisticados, pais ou preceptores que os auxiliam nas atividades escolares, os alunos das classes populares, sem celulares ou computadores e sem pais ou acompanhantes, para realização das atividades didáticas, estão entregues à própria sorte.
O Censo Escolar de 2018 já revelava que nas escolas de ensino fundamental os recursos tecnológicos eram absolutamente insuficientes. Apenas 46,8% dessas escolas tinham informática, 65 % tinham internet e 53% tinham Banda Larga.
A interrupção dos processos de aprendizagem, especialmente dos alunos que se encontram em situações de baixo desempenho escolar, pode representar um corte definitivo da relação destes com a escola. Afinal, tudo que um aluno que não está aprendendo, não se alfabetizou ou apresente fraco desempenho deseja é livrar-se da dor de não estar aprendendo, é livrar-se da exposição pública, na sala de aula, por duzentos dias letivos. Essa fuga, esse desejo do aluno de sumir, está sendo realizada pelo confinamento imposto pelo coronavírus, e o resultado poderá ser trágico: o desinteresse de grande parte dos alunos pela escola.
Além do aumento geométrico da evasão, da reprovação e das não aprendizagens, que já apresentavam índices bastante elevados, os fenômenos do atraso escolar e a não aprendizagem geram vergonha e humilhação, e, em muitos casos, agressividade desmedida. Não aprender provoca muita revolta e se constitui em caldo de cultura para a violência. A criança, o jovem, uma pessoa que não aprende na escola, na universidade, por não alcançar o mesmo nível dos demais, fica adoecida, às vezes intimidada e apática, outras vezes descarrega a sua raiva querendo destruir, ou pelo menos danificar o que a prejudicou e que ela, por isso mesmo, odeia. Existe um estreito vínculo entre violência e escola que não ensina.
A escola tem uma dimensão extraordinária para as classes populares, constituindo-se, na maioria das vezes, no único lugar em que a criança ou adolescente tem um acompanhante, ganha alguma atenção, algum cuidado, e único lugar no qual adquirem o conhecimento elementar e complexo.
É do reconhecido escritor italiano Humberto Eco a afirmação lapidar sobre a necessidade da convivência social: “Como nos ensinam as mais laicas entre as ciência humanas, é o outro, é seu olhar que nos define e nos forma”. A palavra do outro nos permite a reflexão, a confrontação de visões e, consequentemente, a aprendizagem.
O corte do vínculo social promovido pelo misterioso coronavírus, ou o terrível enfraquecimento do vínculo com a interrupção das aulas por tempo prolongado, pode ter um impacto trágico, que é o abandono dos estudos pelos alunos das classes populares, em escala talvez nunca imaginada. O enfrentamento da evasão exigirá um forte investimento tecnológico (programas em canais de televisões, radiofônicos, compra de computadores, instalação de laboratórios de informática, qualificação dos professores) para uma extraordinária qualificação da frequência ou acompanhamento das aulas e garantia da aprendizagem.
Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 a 1999. Preside a Casa da Educação. Psicanalista da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise-ABEPP.
Filiada ao Clube Internacional das Soroptimistas Sudoeste Brasília.