Três filhos decidiram denunciar a própria mãe por agressão, maus-tratos e cárcere privado cometidos supostamente contra o marido, padrasto deles, um servidor público aposentado do Banco Central (Bacen), de 49 anos. A Polícia Civil investiga o caso
Em relatos polêmicos, três filhos decidiram denunciar a própria mãe por agressão, maus-tratos e cárcere privado cometidos supostamente contra o marido, o padrasto, deles, um servidor público aposentado do Banco Central (Bacen), de 49 anos, que terá a identidade preservada pela reportagem. A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) abriu um inquérito para apurar as denúncias, que são baseadas em vídeos, fotos e documentos. O Correio colheu relatos de testemunhas importantes que dão detalhes contundentes acerca dos fatos. Uma das entrevistadas é uma empregada doméstica que trabalhou para a mulher durante um mês e presenciou as agressões.
A suspeita dos crimes é Maruzia das Garças Brum Rodrigues, 52, formada em economia e direito. Em 2002, ela conheceu o servidor, que morava sozinho à época em um apartamento no Sudoeste. Os dois passaram a morar juntos e não demorou muito para os filhos dela começarem a notar que tinha algo de errado. “Meu padrasto sempre foi uma pessoa ativa, que corria no parque, nadava no clube, dirigia, namorava e vivia uma vida normal, feliz”, contou a filha mais velha, que trabalha como policial militar do DF.
Natural do Rio de Janeiro, o homem veio para Brasília em 1998, ano em que tomou posse no cargo de especialista do Banco Central em 9 de julho e entrou em exercício em 15 de julho, como consta nos documentos do Banco. Solteiro e sem filhos, ele deixou a mãe e dois irmãos no Rio e logo parou de ter contato com os mesmos. Poucos anos depois, foi quando conheceu Maruzia. Muito bem organizado, o servidor tinha mania de “toque” e algumas manias. “Ele deixava os livros separados por ordem alfabética, tinha planilha de gastos e as roupas sempre bem organizadas. Nisso, minha mãe começou a dizer que ele tinha problemas psiquiátricos e o levou em diversos médicos. Foi quando ele começou a tomar inúmeros remédios com alta dosagem”, detalhou a filha.
A situação foi piorando, até que os filhos perceberam que o padrasto passava a maior parte do dia dopado, deitado em uma cama, sem conseguir fazer as atividades básicas do dia-a-dia, como colocar comida no prato e tomar banho. “Ele ficou submisso à ela e falava para nós que minha mãe só estava cuidando dele e só queria o bem. Mas aí iniciaram-se as agressões. Ela já fechou a mão dele na porta do carro por várias vezes. Quando chegávamos em casa, tinha panela quebrada e ele sempre com marcas pelo corpo. No período em que morei com eles, tinha vezes que nem água ela queria comprar e começou a faltar tudo e não entendíamos o porquê”, afirmou.
O filho caçula morava com a mãe e o padrasto, mas decidiu sair de casa ainda em 2006 devido à falta de mantimentos. “Até nós, filhos, apanhamos muito dela, a ponto de termos que passar sal grosso para cicatrizar. Quanto ao meu padrasto, foi uma violência gradual, que piorou com os anos. Presenciei ela o xingando várias vezes, o chamando de “demente” e pedindo para que ele mesmo repetisse que era um “demente”. Era uma situação constrangedora.” O filho acredita que a principal motivação para tamanha violência era a questão financeira e ressalta que a mãe, com 52 anos, nunca trabalhou de carteira assinada. “Ela sempre gostou de tudo do bom e do melhor. Das melhores roupas, os celulares mais caros, tablets e não conseguíamos entender porque faltava tanta coisa lá em casa. Até que resolvi morar só”, completou.
Mudança para Portugal
O casal teve um filho, que hoje está com 21 anos e mora em Portugal. A reportagem entrou em contato com o jovem, mas não foi correspondida. Entre 2013 e 2014, Maruzia disse que pretendia fazer um mestrado em Portugal. Nessa época, ela alugou uma quitinete na 402 Sul, próximo ao Banco Central, para que o companheiro pudesse ir e vir do trabalho à pé.
Os filhos chegaram a visitar o padrasto nessa época e o encontraram em condições deploráveis. “Nos espantamos, quando vimos a situação que ele se encontrava. Por semana, ela mandava R$ 100 para ele comprar o básico e deixava duas vasilhas de comida, uma de arroz e outra de carne moída, prontas para ele comer todos os dias. Chegou uma época em que ele comia lasanha congelada na parte da manhã, tarde e noite”, contou a filha mais velha.
Enquanto a mãe estava em Portugal, a filha do meio, recebeu uma ligação do Banco Central questionando o porquê o padrasto pedia R$ 10 na porta do banco para almoçar. “O pessoal da clínica de psiquiatria me telefonou também perguntando porque ele estava almoçando todos os dias lá. Acharam estranho. Durante todo esse tempo, fizemos várias denúncias anônimas, mas nunca deu nada”, disse.
Maruzia retornou ao Brasil em 2019, ano em que o servidor se aposentou, em 20 de agosto, depois de ser diagnosticado com alienação mental. Os dois, então, retornaram para Portugal. No final de julho deste ano, o casal veio para Brasília, pois a mulher passaria por uma cirurgia de abdominoplastia e harmonização facial em um hospital particular do DF.
A revelação
Na capital, Maruzia alugou um apartamento em um condomínio de Águas Claras, onde iria ficar com o marido até recuperar-se da cirurgia estética. Enquanto estava internada no hospital, os filhos decidiram visitar o padrasto. Ao chegarem no edifício, foram informados pelo porteiro que ninguém com determinado nome morava naquele endereço. “Liguei para o dono do imóvel e perguntei se minha mãe ainda tinha contrato com ele. Ele respondeu que sim. Expliquei toda a situação e o proprietário foi até nós, quando conseguimos subir até o apartamento”, afirmou a filha.
A ordem dos filhos de não entrarem no imóvel teria partido da própria mãe. A empregada que negou a entrada prestou depoimento na delegacia. O Correio teve acesso ao interrogatório, e nele a funcionária confessa que a patroa temia que os filhos levassem o marido à força. Em outro trecho do depoimento, ela afirma que o servidor tomava de 8 a 10 comprimidos na parte da manhã e noite.
Quando soube que os filhos haviam conseguido entrar no apartamento, Maruzia fez uma chamada por vídeo ao marido. A cena foi gravada e, durante a conversa, a mulher, em tom ameaçador, diz: “Se está trabalhando, não responde. Cadê sua mãe? Não responde. Está tomando remédio? Não responde. Está trabalhando? Não responde. Entendeu? Para de dar conversa”, diz a economista. A filmagem foi repassada ao Correio, mas para preservar a identidade da vítima, não será divulgada.
Em 8 de setembro, um dia depois do feriado, uma viatura da Polícia Militar e ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foram acionadas até o endereço. Durante o atendimento do Samu, ficou constatado pelas equipes que a vítima estava sob efeito de superdosagem medicamentosa, como consta no próprio boletim policial registrado na 21ª Delegacia de Polícia (Taguatinga Centro), unidade que apura o caso.
Na ocorrência, as filhas relataram que o padrasto apresentava várias escoriações e equimoses no braço esquerdo, que aparentavam datas distintas apresentando também voz enrolada e quadro evidente de superdosagem de medicamentos psiquiátricos. “Só queremos que ela pague por tudo o que fez com ele. Meu padrasto tinha uma vida ativa, era atleta e feliz. Agora, está sendo dominado, foi tomado por ela e acha que está sendo cuidado”, desabafou a filha.
No imóvel, os filhos encontraram várias caixas de rivotril, medicamento utilizado no tratamento de distúrbios de ansiedade, como síndrome do pânico, ansiedade social, entre outros. Caso tomado em excesso, o remédio pode levar a ausência de reflexos (arreflexia), apneia, hipotensão arterial, depressão cardiorrespiratória e outros sintomas. “Para nós, ele confessou que estava tomando remédio para castração química. Isso é um absurdo. É um crime”, frisou ela.
Investigação
O caso segue em andamento na 21ª DP. Em contato com o delegado-chefe da unidade, Alexandre Gratão, ele afirmou à reportagem que a apuração da denúncia “está completa”, mas não deu mais detalhes para não atrapalhar as investigações.
Com uma riqueza de detalhes, a mulher revela que ela mesma notou que o servidor tinha um ferimento no braço supostamente causado por Maruzia. O corte profundo foi de uma facada desferida pela mulher, acredita a empregada. “Quando perguntei a ele do que se tratava o machucado, ele foi até a cozinha, pegou uma faca e apontou para o braço, dando a entender de que havia sido esfaqueado. Depois disso, escondi todas as facas debaixo do armário”, disse.
A empregada foi contratada para cuidar da casa enquanto a patroa passaria pelo procedimento cirúrgico e ficava das 7h30 até às 17h30 na residência. “São várias caixas de remédio que têm. Não tive a oportunidade de ler, mas são muitos frascos e ele toma muito remédio durante o dia. Dá para ver que ele foi maltratado ao longo do tempo. É uma pessoa sofrida e triste”, relatou.
Em algumas situações, a empregada flagrou várias ameaças de Maruzia ao marido. “Ela fala que se ele comentar qualquer coisa a alguém, vai deixá-lo na rua sozinho. Ele não pode olhar para ela, nem falar, nem dormir na cama e muito menos usar o banheiro dela. Uma vez, ela achou que ele tinha mexido no sabonete dela. Foi a maior confusão e eu nunca ouvi tantos xingamentos em minha vida”, detalhou.
A foto em que mostra o ferimento causado por uma suposta faca foi tirada pela própria doméstica, que insistiu para que o servidor deixasse fazer o registro. “Ele disse que era muito perigoso, mas mesmo assim deixou. Parece que ele está dominado por ele. Não tem forças para agir.”
A Justiça requereu ao Banco Central o encaminhamento dos eventuais relatórios médicos que atestem a incapacidade do servidor. Além disso, foi solicitado que a Polícia Federal impeça o homem de deixar o Brasil até a conclusão das investigações. A reportagem não localizou a defesa de Maruzia. O espaço permanece aberto para manifestações. (Publicado originalmente pelo Correio)