*Frutuoso Chaves
A prisão domiciliar, ao cabo de cinco meses, já me afrouxa as rédeas do espírito. É hora, então, de a alma ganhar o mundo a fazer tudo aquilo que ao corpo não é permitido. E, isso, com uma vantagem: a de poder viajar a qualquer lugar, ou tempo.
Agora mesmo, eu desembarco na costa da Bahia, quando Bahia ainda não é, porquanto ponho os pés em terra firme naquele abril de 1500.
Quarenta e quatro dias desde a saída de Lisboa num dos 13 navios da expedição do comandante Pedro até baixar âncora em águas rasas, à pequena distância da areia onde corre, alvoroçado, um bando de gente nuazinha em pelo.
Durante a viagem tivemos mil e quinhentos machos fedorentos espremidos em três caravelas e dez naus. Banheiro? Nem pensar, meu camarada: arreie as calças e ponha o traseiro para fora, a fim de que seus dejetos caiam no mar. E na frente de todo mundo, até de Frei Coimbra.
Coitado do frade. A trilha de cocô deixada desde Lisboa na travessia do Mar Tenebroso não é a coisa mais chocante que ele veria. Mal sabe o pobre o que o aguarda.
O sacana do Pedro enganou todo mundo. É, de fato, um fidalgo, expressão que vem de “filho de algo”. E vocês sabem de quem. Disse-nos, e às nossas mães, mulheres e filhos, que iríamos para as Índias, beirando a costa da África, rota conhecida e há muito já feita em busca de seda, cominho, cravo e canela. Em suma, daqueles temperos destinados a dar graça aos pães, às carnes e batatas da velha Europa.
Mas, lá para as tantas, o homem ordenou o desvio para dentro do Atlântico, sem direito a reclamação. Estava certo de que aportaríamos num mundo novo, tal como aconteceu a Colombo. E tome tempestade e tome calmaria, com o vento forte, ou a falta dele, a fazer seus estragos.
Ninguém pense que foi uma travessia fácil. Mais difícil, ainda, seria o retorno. Com base nos problemas já enfrentados, estimávamos que apenas 500 de nós conseguiríamos voltar para nossas famílias. A maior parte afundaria, ou se perderia no mar para morrer de fome e sede, em lenta agonia.
Mas, enfim, em 22 de abril, estávamos, ali, em porto seguro. Por falar nisso, eis um nome que este lugar poderia adotar no futuro.
Nicolau Coelho é despachado num escaler, com homens armados, a fim de se entender com aquela gente esquisita. Nós todos paramentados dos pés ao gogó e aquele pessoal de cor parda com tudo solto, balançando. Como era uma gente amiga, foi dado o sinal para que o resto da tripulação desembarcasse.
Juro que houve gente a pensar que havíamos aportado no Paraíso, aquele mesmo de Adão e Eva que boa parte dos europeus supunha perdido num recanto qualquer da Terra.
Todo mundo nu, macaxeira em abundância, frutas ao alcance da mão, caça e pesca a valer, tudo isso faz crer em que esta é, de fato, a terra da maçã, embora maçã aqui não haja. Estávamos todos encantados. Haveria lugar melhor do que esse?
Pero Vaz de Caminha tinha uma missão complicada diante de si: contar a Dom Manuel I, o rei, aquilo que víamos. Frei Coimbra, tadinho, mal erguia os olhos e se deparava, horrorizado, com gente pelada em todas as direções da Rosa dos Ventos. E tome reza.
Pero decidiu não esconder nada a Sua Majestade. E tascou a caneta. Contou, tintim por tintim, sobre aquilo tudo que vimos na praia. Eis alguns trechos despachados para Portugal, enquanto, aí sim, retomávamos a rota das Índias.
“Ali andavam três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam”.
Também: “Uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”.
Isso explica o fato de muitos homens se embrenharem no mato quando o comandante Pedro gritou: “Vamos voltar”. Se embrenharam tanto que um grupo encarregado de reembarcá-los a nenhum deles conseguiu encontrar.
Já desperto da minha viagem mental, eu leio que Pero Vaz produziu mais do que pretendia. O que ele escreveu, acertadamente, sem nenhum tipo de censura, foi a certidão de nascimento disso que hoje temos por Brasil.
Trata-se de documento inscrito, em 2005, no Programa Memória do Mundo, iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a famosa Unesco. Também me ocorre que seria tão bom aprender a história do Brasil desse jeito.
* Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia, Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).