Por um 2021 “normal”, o mundo se mobilizou em busca de um imunizante eficaz e seguro contra a covid-19. Em todo o planeta, são quase duzentas iniciativas que visam atender a essa demanda da humanidade.
Para agilizar o processo de registro das vacinas britânica e chinesa — as mais adiantadas até o momento —, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alterou o procedimento de submissão dos documentos, dando a possibilidade para que as farmacêuticas produtoras dos imunizantes possam enviar novos dados parceladamente, à medida em que surgem novidades. Esse primeiro passo não significa, no entanto, que a vacina será registrada. “Importante ressaltar que não existe, neste momento, nenhuma conclusão sobre a qualidade, a segurança e a eficácia de nenhuma das duas vacinas, que continuam cumprindo a terceira etapa de testes”, explica a nota da agência.
Ilustração de dados(foto: Editoria de ilustração)
A vacina de Oxford, produzida pelo laboratório Astrazeneca, foi a primeira a enviar a documentação preliminar, referentes aos estudos não clínicos. No entanto, o Ministério da Saúde anunciou que as doses, previstas para chegar ao Brasil em dezembro, só devem ser entregues em janeiro de 2021. Este primeiro lote deve contar com 30 milhões de doses. Outros 70 milhões de insumos para produção pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) estão previstos para o primeiro semestre do ano que vem. O acordo inclui, ainda, transferência de tecnologia para o Brasil.
Além da Astrazeneca, a farmacêutica Sinovac, responsável pelo desenvolvimento da chinesa CoronaVac, enviou, um dia depois, as primeiras documentações para registro junto à Anvisa.
O acordo é para o fornecimento de 46 milhões de doses da vacina, feita em parceria com o Instituto Butantan. “As vacinas serão entregues pela Sinovac ao Butantan no próximo mês de dezembro”, informou o governador de São Paulo, João Doria, durante a assinatura de acordo com o laboratório chinês. Segundo Doria, além da remessa para dezembro, outras 14 milhões de doses serão fornecidas em fevereiro de 2021.
Estudos autorizados
As candidatas britânica e chinesa não são as únicas em estágio avançado e promissor para chegar à população brasileira. Quatro medicamentos receberam autorização da Anvisa para realizar testes de fase três no Brasil. A Farmacêutica Moderna também anunciou o progresso do imunizante desenvolvido pela empresa. Segundo informado à imprensa, a vacina experimental apresentou uma resposta positiva em idosos.
A vacina produzida pelo laboratório belga Janssen, braço da Johnson & Johnson, e coordenada pelo L2iP Instituto de Pesquisas Clínicas, também apresentou resultados animadores. O imunizante, que será testado no Distrito Federal, gerou anticorpos em 98% dos participantes dos estudos preliminares. Com esses dados, a vacina segue para a fase três.
Ainda na transição das fases dois e três de testagem, uma parceria entre iniciativas privadas caminha para a validação da imunização em pelo menos 3 mil voluntários no país. A UB-612, da americana Covaxx, precisa ser submetida à aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e da Anvisa. O objetivo é trazer ao país 50 milhões de doses.
Outra iniciativa que ainda aguarda autorização para início dos ensaios clínicos é a Sputnik V. No mês passado, o governo do Paraná assinou um acordo com a Rússia na intenção de aproximar as relações e, assim, firmar mais uma parceria para produção de uma potencial vacina contra a covid-19. O Distrito Federal também estuda um acordo. Porém, pelo menos por enquanto, essa negociação segue confidencial.
Politização
Apesar dos avanços científicos, a politização pode afetar a chegada dos imunizantes. Países mais ricos já compraram metade do estoque das iniciativas mais promissoras de vacinas. Segundo relatório da ONG Oxfam, trata-se de um grupo seleto que representa 13% da população mundial. Somente os Estados Unidos encomendaram o estoque inteiro de uma fabricante de vacina, que só conseguirá a atender a outras demandas em 2022.
De acordo com o especialista em gestão de Saúde da Fundação Getulio Vargas (FGV) Walter Cintra, essa dinâmica é um problema. “Isso é fruto de uma política individualista que rompe a sistemática com as organizações unilaterais”. “Se for prevalecer esse tipo de individualismo, será realmente um problema, pois só vai agravar a desigualdade no mundo”, afirma.
Os embates políticos em torno da vacina suscitam, ainda, uma espécie de favoritismo em relação a determinado imunizante. Muitos brasileiros têm se recusado, desde já, a tomar o imunizante chinês ou russo. Evandro Carvalho, doutor em direito internacional e professor da FGV, diz que esse fenômeno pode ser encarado como xenofobia aflorada pelas fake news. “É uma espécie de retomada de mentalidade típica de Guerra Fria, estimulada por um radicalismo do governo que identificam países com regimes comunistas quase como inimigos”, observa.
O professor da FGV explica que o multilateralismo está sendo prejudicado, com tendência à realização de acordos bilaterais. “Os Estados Unidos, por exemplo, têm assumido claramente uma política externa unilateralista. A pandemia mostrou claramente a importância da Organização Mundial da Saúde. Atacar o multilateralismo é defender, direta ou indiretamente, o retorno da lei do mais forte no plano internacional, isso não é bom para o Brasil, nem para o mundo”, defende Carvalho.
Entre os desafios a serem vencidos está a disponibilização da vacina de acordo com a necessidade do país, e não com a capacidade de pagar. Para isso, os países trabalham em conjunto para levantar fundos multibilionários, como a iniciativa Covax, que tem como objetivo acelerar a fabricação de vacinas contra a covid-19 e garantir um acesso igualitário entre os colaboradores. O Brasil uniu-se à aliança no final de setembro. “Francamente, isso não é um desafio financeiro, é um teste de solidariedade”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em coletiva, quando impulsionou a comunidade internacional a mobilizar US$ 35 bilhões para os acordos multilaterais.
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