Maria José Rocha Lima
É um tempo precioso para aproveitarmos produtivamente: recordando, repetindo e elaborando. Em 1989, Peter Gay, biógrafo de Freud, do fundador da Psicanálise, afirmou: “Ouvir, para Freud, tornou-se mais do que uma arte, tornou-se um método, uma via privilegiada para o conhecimento, à qual os pacientes lhe davam acesso”.
É o famoso método The talking Cure – a Cura pela Fala, que a psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco descrevia como um tratamento que permite que o paciente verbalize o sofrimento, encontre as palavras para expressá-lo, permitindo, senão curá-lo, ao menos tomar consciência de sua origem e, portanto, assumi-lo. E concluia que “é preciso aceitar o desafio de ressignificar as perdas, compreender que somos capazes de morrer várias vezes em vida e renascer num processo de reinvenção de nós mesmos”.
Durante este período de pandemia, eu e a minha irmã Sueli vimos puxando o fio das memórias familiares e até andamos alcançando memórias ancestrais. Estes dias trouxemos à memória minha avó Doralice Gomes dos Santos, Tia Dora, a florista, que saiu do convento da Providência em Salvador Bahia para criar as únicas sobrinhas: minha mãe, Dona Teresinha, e a sua irmã, nossa amada tia Alzidéa Rocha Portugal, que perderam o pai e a mãe no mesmo ano. Nunca tínhamos falado dessa minha avó, a Tia Dora, com tanto reconhecimento, carinho e gratidão. A devoção da minha avó pelas suas sobrinhas nos fez realizar novas elaborações sobre a família, sobre as suas bênçãos e maldições.
Assim, recordando, repetindo e mais e mais elaborando, vamos atravessando esses dias, tornando-os mais digestivos.
Sueli tem uma memória incrível, especialmente afetiva, só não ganha para o irmão caçula José Antonio Rocha, Zeinho para os íntimos. Ele tem uma memória fantástica! Pense num carinha que prova para a humanidade que somos feitos de memórias.
E Sueli, além da memória, conseguiu encarar a vida com um jeito mais ameno. A dureza da vida nunca venceu minha irmã. Lá de Portugal, ela, que é doce ao ler a minha publicação da Carta à Minha Mãe, me socorreu. Ela me redimiu daquele julgamento muito rigoroso, comigo mesma, quando aos dez anos dava aulas de reforço para Eleaci, nos anos 1960, cobrando compromissos dela e da sua mãe, Mariana, que era lavadeira na nossa casa e tida como meio louca. Ela me lembrou que até uma aliança de casamento eu fiz mainha comprar para oferecer a Mariana. Eu queria casar Mariana e organizar a sua vida familiar tão conturbada. E, como uma história puxa outra, lembrei-me que levei Mariana ao Teatro Castro Alves, logo após a sua inauguração, mas essa é outra história que contarei.
Meus irmãos Sueli e Zeinho são as provas de que Sigmund Freud tem razão quando nos diz: “Não somos apenas o que pensamos. Somos mais; somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos, ‘sem querer'”.