Desde que centenas de apoiadores de Trump irromperam pelas portas e janelas do Congresso Nacional, que naquela tarde de 6 de janeiro de 2021 certificava a vitória presidencial do democrata Joe Biden, mais de 725 pessoas foram presas e indiciadas por crimes como invasão e destruição de propriedade pública e lesão corporal a policiais
Em seu perfil no Twitter, o homem branco de meia idade do Texas se descreve como um “pecuarista conservador e abençoado”. Entre seus posts, ele afirma, um ano depois da invasão do Congresso dos Estados Unidos por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, em 6 de janeiro de 2021, que o republicano ganhou a eleição presidencial de 2020.
“Eu até gostaria de dar entrevista e dizer que isso tudo foi uma grande conspiração da esquerda e da máquina burocrática, mas não me sinto confortável”, afirmou o eleitor republicano ao ser procurado pela BBC News Brasil para comentar o primeiro aniversário do ataque ao Capitólio.
Já a dona de casa da Pensilvânia, mãe de 15 filhos, entre os quais dois soldados das Forças Armadas americanas, posta, entre manifestações religiosas, um meme em que uma mulher, identificada como “a mídia”, força um líquido (“a narrativa sobre 6 de janeiro”) goela abaixo de outra mulher (“o povo americano”). “Não engulam essa porcaria”, recomenda.
Um ano, 725 indiciados, 31 encarcerados, US$ 1,5 mi em prejuízo
Desde que centenas de apoiadores de Trump irromperam pelas portas e janelas do Congresso Nacional, que naquela tarde de 6 de janeiro de 2021 certificava a vitória presidencial do democrata Joe Biden, mais de 725 pessoas foram presas e indiciadas por crimes como invasão e destruição de propriedade pública e lesão corporal a policiais. Cerca de 70 já foram julgadas e 31 delas – entre as quais Jacob Chansley, que ficou conhecido mundialmente pelos adornos de chifre que usava enquanto desfilava pelas salas congressuais – cumprem pena em cadeias pelo país.
As câmeras de segurança, de jornalistas e manifestantes registraram o passo a passo dos atos: a depredação na sala da presidente da Câmara, enquanto seus auxiliares se escondiam; o avanço dos manifestantes que gritavam “enforquem Mike Pence”, enquanto o então vice-presidente e sua família eram levados para um esconderijo seguro no prédio; o desespero de parlamentares que se lançaram ao chão de um dos plenários, cercado por manifestantes; os atos heroicos dos agentes de segurança que chegaram a, sozinhos, conter e dispersar dezenas de invasores.
A invasão ao prédio do Congresso – que gerou destruição estimada em US$1,5 milhão (ou mais de R$8,5 milhões) – foi o ato final de uma manifestação de apoio ao então presidente Trump, que havia perdido a tentativa de reeleição em novembro do ano anterior e se recusou a conceder.
Milhares de pessoas se reuniram na capital americana, Washington D.C., naquela manhã de inverno para ouvir do próprio Trump que as eleições tinham sido fraudadas e que ele, sim, era o vitorioso do pleito.
“Todos nós aqui hoje não queremos ver nossa vitória eleitoral roubada por democratas da esquerda radical, que é o que eles estão fazendo. Nós nunca desistiremos, nunca iremos conceder a vitória. Você não admite derrota quando há roubo envolvido”, afirmou Trump no discurso ao público, antes que parte dos manifestantes marchasse para o Capitólio. “E nós lutamos. Nós lutamos pra caramba. E se você não lutar muito, você não terá mais um país”, disse Trump, que já havia tido recusadas dezenas de contestações na Justiça sobre a contagem de votos.
Apenas duas semanas após a invasão do Capitólio, no mesmo prédio, Biden foi empossado como o 46º mandatário da história do país, em um governo que agora está prestes a completar um ano.
Apesar disso tudo, o pecuarista do Texas e a dona de casa da Pensilvânia seguem acreditando que o atual presidente americano, Joe Biden, fraudou as eleições para chegar à Casa Branca e que as cenas vistas no Capitólio foram orquestradas por grupos de militantes esquerdistas – especialmente antifascistas, conhecidos como “Antifa” – ou por patriotas desesperados por salvar a democracia do país. E ambos não estão sozinhos nessa crença: dezenas de milhões de americanos partilham dessas mesmas convicções.
“Nossa pesquisa mostra que 71% dos eleitores que se identificam como republicanos dizem que Biden não foi eleito legitimamente. E outros 6% dizem não ter certeza. Então potencialmente três quartos dos republicanos acreditam até hoje que Trump ganhou”, afirma o cientista político da Universidade de Massachussets, Amherst, Alexander Theodoridis. Theodoridis é um dos diretores de uma pesquisa sobre o assunto divulgada há uma semana e feita em parceria com o Instituto YouGov.
Outros levantamentos apontam na mesma direção. Em novembro, o Public Religion Research Institute aferiu que 68% dos republicanos acreditavam que a eleição havia sido “roubada” de Donald Trump. Como cerca de 50 milhões de pessoas são registradas como eleitores republicanos nos EUA, as sondagens indicam que ao menos 35 milhões de americanos seguem convencidos de ter havido fraude eleitoral.
“Comparado ao eleitorado em geral, aqueles que acreditam que Trump ganhou a eleição de 2020 são desproporcionalmente republicanos e brancos. Na média são mais velhos, vivem nos Estados do Sul e têm menor escolaridade. E são mais conservadores e religiosos – com frequência se descrevem como cristãos protestantes”, diz Theodoridis.
Republicanos em fila atrás de Trump
Especialista em eleições e teorias da conspiração nos EUA, o cientista político Joseph Uscinski, da Universidade de Miami, afirma que, historicamente, entre 30% e 40% dos eleitores americanos afiliados ao partido perdedor em uma dada eleição presidencial tendem a contestar a lisura do pleito.
“As pessoas acreditam em todo tipo de coisa e isso é triste, mas é o que é. A diferença aqui é que pela primeira vez vimos um presidente no poder e seu partido endossando essas teorias conspiratórias. E isso explica porque essa taxa de incrédulos é o dobro do que a taxa histórica, porque há líderes políticos que abusam da confiança que as pessoas depositam neles e espalham desinformação. Se Trump tivesse admitido a derrota, não veríamos esses números. Mas não foi isso o que aconteceu”, afirma Uscinski.
Imediatamente após as cenas de violência no Capitólio há um ano, líderes republicanos vieram a público condenar os atos de Trump e de seus apoiadores. O senador Mitch McConnell afirmou que o então presidente era “prática e moralmente responsável” pela invasão do Congresso. O deputado Kevin McCarthy, líder da minoria republicana na Câmara, disse que Trump concorreu para “o ataque dessa massa amotinada”.
No caso de McCarthy, a indignação com Trump não durou nem mesmo 15 dias. O líder voltou atrás e disse que não acreditava mais que o mandatário tivesse provocado a invasão. O mesmo aconteceu com quase todos os políticos com mandatos federais.
Jim Jordan, o representante republicano por Ohio, culpou manifestantes Black Lives Matter por criar um clima de “normalização da anarquia” no país e sugeriu, sem qualquer evidência, que os envolvidos nos atos podiam ser manifestantes por igualdade racial ou esquerdistas – discurso repetido por eleitores republicanos. O deputado republicano Paul Gosar, do Arizona, disse que o serviço de inteligência americano, o FBI, tinha sido o real responsável por desencadear a violência no Capitólio.
Já o trumpista Matt Gaetz, deputado pela Flórida, criticou recentemente a Comissão Parlamentar de investigação sobre o 6 de janeiro por querer interrogar o analista político Steve Bannon e o chefe de gabinete de Trump Mark Meadows, entre outros assessores que travaram diálogos com Trump naqueles primeiros dias de 2021.
“É quase como se o Comitê Corrupto sobre 6 de janeiro estivesse perseguindo todos aqueles de quem Trump precisa para vencer (a eleição) novamente em 2024. É coisa de República das Bananas”, afirmou Gaetz, que passou o ano novo em Mar-a-Lago, a casa de veraneio de Trump na Flórida.
“Seis anos atrás, os republicanos tratavam Trump como um espetáculo à parte do partido. Hoje, um número significativo de republicanos históricos e convencionais se coloca em fila atrás de Trump, mesmo depois que seus apoiadores pediram a execução de seu vice-presidente enquanto vagavam pelos corredores do Congresso”, afirma Michael Edison Hayden, porta-voz do Southern Poverty Law Center, um observatório de extremismo e discurso de ódio nos EUA.
Aqueles republicanos que não seguiram esse caminho, e apoiaram investigações sobre os assuntos, foram lançados ao ostracismo partidário. O caso mais emblemático é o da deputada Liz Cheney.
“Não há dúvida de que o presidente formou a turba e a incitou. Ele acendeu a chama (para o ataque)”, ela tuitou ainda em 6 de janeiro.
Cheney, que integra a comissão parlamentar de investigação dos atos daquele dia, foi removida do posto de líder republicana na Câmara, e substituída por Elise Stefanik, uma entusiasmada trumpista e deputada por Nova York. Em seu conservador Wyoming, Cheney recebeu censura pública do partido. “É um ser humano horrível e amargo”, afirmou Trump publicamente sobre ela, que já foi considerada uma republicana de alta patente, em parte por ser filha do ex-vice-presidente Dick Cheney, e agora deve perder seu assento na Câmara nas eleições legislativas de novembro de 2022.
“Os pouquíssimos republicanos que se opuseram às acusações de Trump sobre fraude eleitoral estão com os cargos arriscados ou se aposentaram. Entre os que não o fizeram, alguns realmente acreditam no que ele diz, mas muitos o enxergam como um grande problema, só que estão assustados demais para fazer algo. E nossa pesquisa sugere que eles têm razão em estar assustados: mais da metade dos eleitores republicanos disseram que não pretendem votar nos candidatos do partido que não tenham apoiado a retórica e os atos de Trump”, afirma Theodoridis.
Fervorosa defensora de Trump
Para a enfermeira Catherine*, de 30 anos, não seria surpresa se sua mãe, republicana, não apenas punisse quem discordou de Trump no voto como ‘pedisse pena de prisão a eles’.
Nos últimos anos, a mãe de Catherine, uma corretora de imóveis aposentada do Wisconsin, passou de uma eleitora historicamente desinteressada em política a uma fervorosa defensora de Trump, que segue acreditando que o ex-presidente seria o legítimo ocupante da Casa Branca. Para Catherine, o extremismo da mãe ficou evidente por meio do controle remoto da televisão.
“Ela sempre assistiu (ao canal de notícias de tendência conservadora) FOX News. Eventualmente a FOX ficou esquerdista demais para ela e ela optou pela Newsmax (rede que noticiou como verdadeiras as alegações de fraude eleitoral de Trump sobre as quais não há provas). Ela se inscreveu no Twitter especificamente para seguir apenas Trump, mas saiu quando a conta dele foi suspensa. Agora, ela recebe correntes de texto de seus ‘amigos’ que têm o que ela chama de ‘notícias reais’, basicamente um compêndio de conspiração do QAnon. Chegamos a um ponto em nosso relacionamento em que simplesmente não podemos discutir política”, afirma Catherine.
Aos 61 anos, a mãe de Catherine recusa-se a se vacinar contra covid-19. Há algumas semanas, Trump afirmou publicamente que tomou imunizantes contra o novo coronavírus, inclusive a dose de reforço. Foi vaiado na ocasião pela plateia de apoiadores. A mãe de Catherine crê que o vídeo em que Trump recomenda a vacinação é uma montagem.
Para o cientista político Uscinski, o episódio da vacina mostra que voltar atrás em dadas mensagens repetidas a exaustão aos eleitores pode ser inviável no curto prazo. E por isso, a crença em teorias da conspiração entre republicanos pode ser um fenômeno que se estenderá ao longo de décadas. “Acreditar que Trump venceu em 2020 se tornou parte do que significa ser republicano, tanto quanto não acreditar em aquecimento global ou recusar-se a tomar a vacina de covid”, diz Uscinski.
*O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua privacidade