Maria José Rocha Lima[2]
A amizade verdadeira o tempo não apaga, a distância não separa e a maldade não destrói. Na semana passada, recebi uma ligação telefônica da amiga de juventude Maurícia Dias Araújo, a célebre Mau- Mau ou para os muito íntimos, como eu, Mixuruca. Quarenta anos depois fui ao dicionário ver o significado de mixuruca:pequena, modesta.
O reencontro, mesmo a distância, me fez tanto bem, promoveu em mim um estado para além de especial. E melhor ainda que ela me ligou para dar notícias da minha única tia por parte de mãe, a muito amada tia Déa – Alzidéia Rocha Portugal, que atualmente mora em Xique – Xique. Era aniversário de 86 anos de tia Déa, eu estava triste por não ter contato com a minha tia; preocupada porque ela não gosta de morar no interior, é uma soteropolitana apaixonada pela terra do Senhor do Bonfim, mas, idosa, precisa dos cuidados da filha, que mora no interior.
A minha amizade com Maurícia começou com o ingresso dela no Centro de Ensino e Tecnologia da Bahia –CETEBA-, após dias de iniciado o curso. No dia seguinte, haveria prova de estatística, disciplina pela qual ela não nutria “simpatia.” Eu me aproximei dela e a convidei para dormir na minha casa, onde estudaríamos juntas. Estudamos e deu certinho, ela alcançou a média. Como minha mãe a convidou para ficar com a gente, acabou ficando, pois estava chegando de Mundo Novo, interior da Bahia, morando em pensionato.
Atualmente, quantas pessoas constroem amizades desse jeito, quantas mantêm amizades, como as nossas, de quatro décadas? E, ainda, envolvendo os familiares? Tanto Maurícia quanto eu nos envolvemos e envolvemos os nossos familiares na amizade. As irmãs de Maurícia, professoras Anísia e Zinía Dias Araújo, quando foram residir em Salvador, tornaram-se minhas amigas, ingressaram na luta da Associação de Professores Licenciados da Bahia – APLB-, transformando-se em verdadeiras militantes da luta em defesa dos professores e da educação baiana.
Para a escritora Martha Medeiros, “duas dúzias de amigos assim ninguém tem”. Este texto, que guardei na memória e citarei aqui e ali, é muito significativo. Diz a autora que amigo não empresta a prancha, mas empresta o ombro, o tempo, o calor, o casaco. Um amigo não dá carona para a festa, mas te leva pro mundo dele, te aceita e quer conhecer o teu. Um amigo não caminha apenas nos shoppings, mas anda em silêncio ao teu lado na dor; entra em campo contigo; sai do fracasso ao teu lado. Um amigo não segura a barra, apenas. Segura a mão, a ausência, segura uma confissão, segura o tranco.
Para ela, um amigo não é para rachar contas, mas rachar lembranças. E é isto que farei a partir daqui sobre a amizade com Mau Mau. Ela trouxe muita alegria para a nossa casa, para a minha vida. Eu embarquei na dela, me levando menos a sério, e ela embarcou na minha. Entrou para o Grupo de Teatro Amador Amadeu, para o Partido Comunista, para a APLB, aos quais eu estava filiada e por aí fomos.
Maurícia é uma pessoa muito bem humorada, e brincávamos a valer na universidade e em casa. Por exemplo, íamos beber um refrigerante numa bodega em frente ao CETEBA. Ela me convidava em alto e bom som: “Maria José, vamos tomar uma cachaça com cobra no Bar de Juba”? E íamos lanchar e voltávamos, ela, quase sempre, fazendo careta enquanto eu não parava de rir. Ela entrava na sala de aula fazendo de conta que bebeu pinga, para impressionar os professores. Eu morria de vergonha, mas não tinha como não rir daquela maluquice. Maurícia também costumava errar propositalmente nos exercícios da aula de educação física, para atrapalhar, e reclamava: “O que é isso, Maria José?”. E quando o professor, um militar, perguntava: “Alguém cansado?”, ela se apressava a responder: “Eu”. Quando o professor olhava, ela dizia: Que é isso, Maria José?” O resultado foi que Educação Física foi a nota mais baixa no meu Currículo da Licenciatura, nota sete.
Houve também um episódio inesquecível: ao passarmos no Campo Grande, em Salvador, próximo a uns prédios luxuosos, ouvimos de um porteiro: -“Eu gosto de mulher assim: mixuruca”. Ela disse: “Foi com você, Maria José”!, e eu dizia: “Foi com você”! E essa questão enigmática não foi resolvida até os nossos dias. Por isso, nos chamamos Mixuruca: “Diga aí, Mixuruca”! “E você, Mixuruca, o que me conta”?
A ligação de amizade com Mau-Mau me fez refletir dias e mais dias sobre as elaborações do Zygmunt Bauman (1925-2017), filósofo e sociólogo judeu-polonês que desenvolveu uma teoria sociológica para explicar o modo de vida nas sociedades do século XX, designando “modernidade líquida”, com significativa mudança nas relações sociais. A ideia do autor é a de que “o amor torna-se cada vez mais descartável, conforme a vida exige mais praticidade”.
Nesse sentido, toda a sociedade do século XX foi marcada pelo uso em massa da internet, que, através da modificação de interações, incitou o egocentrismo, uma vez que cada usuário sente-se o centro das relações. O amor e a amizade tornam-se descartáveis, recicláveis, e os relacionamentos não duram.
Contudo, o amor é importante e não apenas o amor romântico. Amor entre irmãos, amor familiar, amor de amigos. O amor perdeu espaço e sem amor não somos completos. Inclusive, sem o amor-próprio!
Na expressão de Montaigne (1533-1592), “o prazer, a utilidade, a necessidade pública ou privada forjam e alimentam: o amor, afeição, camaradagem, vínculos familiares, comerciais ou políticos, ou mesmo as mais frágeis conjunções e simpatias, como as que se estabelecem entre companheiros de viagem”.
Montaigne hierarquiza esses vínculos pelo grau da aliança que propiciam, pela sua consistência e solidez, e instala a verdadeira amizade no topo da classificação, reinando soberana.
[1] Tudo é amizade. E “Aequalitas”, “Similitudo” e “Benevolentia” são os elementos fundamentais das relações humanas. Erasmo de Roterdã (Rotterdam), “o grande humanista, ilustra bastante bem a transcrição do velho tema diafônico — ou mesmo polifônico — da amizade para o solo monódico da semelhança. Vê nas diversas modalidades de aliança consideradas pelos antigos o desdobramento e aprofundamento progressivo de um parentesco físico e espiritual entre os homens, que os inclina para o amor e aponta a concórdia”.
[2]Maria José Rocha Lima é mestre em educação pela Universidade Federal da Bahia e doutora em Psicanálise. Foi Deputada de 1991 a 1999. Presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. Diretora da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise. Soroptimist International SI Brasília Sudoeste.Sócia Benemérita da Hora da Criança- Bahia.