Naufragado em 1916 perto de Ilhabela (SP), transatlântico era considerado o navio mais luxuoso da Espanha e tinha estrutura de duplo casco, como o Titanic.
O transatlântico era considerado o navio mais luxuoso da Espanha — Foto: DIVULGAÇÃO via BBC
Por Simone Machado, BBC
Era madrugada de 5 de março de 1916 quando o transatlântico Príncipe de Astúrias passava pela costa de Ilhabela (SP) em direção ao porto de Santos (SP).
A bordo, oficialmente, estavam 588 pessoas, sendo 193 tripulantes. No entanto, estima-se que havia mais pessoas — imigrantes que viajavam sem registros.
A embarcação havia saído de Barcelona, na Espanha, com destino a Buenos Aires, na Argentina. Ela passaria por Las Palmas, Santos e Montevidéu até chegar ao seu destino.
O transatlântico era considerado o navio mais luxuoso da Espanha e tinha 150 metros de comprimento. Era composto por dezenas de confortáveis cabines, subdivididas em 1ª e 2ª classes, classe econômica e setor de imigrantes, que concentrava quase a metade das pessoas que estavam a bordo.
O navio tinha ainda: restaurante, biblioteca, deck com vidros de cristal e sala de música.
“Além da separação por pavimentos, cada classe tinha a sua cozinha e seu restaurante próprio. Assim, a cozinha internacional e requintada da primeira classe servia um cardápio diferente dos demais”, explica Plácido Cali, arqueólogo e historiador.
As famílias ricas ficavam nos “camarotes especiais” da primeira classe, com quarto, sala e banheiro com banheira. Enquanto o chamado setor de imigrantes não tinha luxo, com quartos pequenos e até mesmo sem janelas.
“Os passageiros eram de várias origens. Além de espanhóis, em sua maioria, havia italianos, portugueses, brasileiros, franceses, sírios, turcos, argentinos e ingleses. Dentre esses passageiros, havia trabalhadores do comércio, jornaleiros, domésticas, artistas, agricultores, industriários, curtidores, cozinheiros, carpinteiros, sapateiro e estudantes”, detalha o historiador.
A lista de passageiros do transatlântico registrada no Porto de Santos — Foto: MUSEU NÁUTICO DE ILHABELA/PLÁCIDO CALI/via BBC
Naufrágio durou 5 minutos
Já fazia 16 dias que o Príncipe de Astúrias estava em alto mar. Era uma segunda-feira de carnaval. Durante a noite, havia ocorrido um baile e os tripulantes dançaram marchinhas no salão principal do navio.
Naquela madrugada, chovia muito e a visibilidade estava péssima até mesmo para o experiente capitão José Lotina. Era a oitava viagem dele no comando do Príncipe de Astúrias.
O historiador conta que foram encontrados registros de várias passagens do Príncipe de Astúrias pelo litoral do Brasil.
“Os documentos da ‘Inspectoria de Immigração no Porto de Santos’ registram a passagem do Príncipe de Astúrias em outubro e novembro de 1914, janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro de 1915; janeiro e março de 1916, a última viagem dele”, explica.
Uma das alternativas encontradas por Lotina para fugir da tempestade e melhorar a navegabilidade naquela madrugada foi mudar a rota. Em vez de seguir em mar aberto em direção a Santos (SP), ele ordenou que um desvio fosse feito. Ele não sabia que a nova rota ia em direção à parte mais rasa do mar e que ali havia uma área de corais.
Às 4h15, o luxuoso transatlântico bateu em formações rochosas na área da Ponta da Pirabura, na costa de Ilhabela (SP). O choque danificou sua estrutura, abrindo uma fenda de aproximadamente 40 metros no casco. Em poucos minutos, a casa de máquinas do navio foi inundada, causando a explosão das caldeiras, que partiu a embarcação em três pedaços.
Em cinco minutos, a tragédia aconteceu: o Príncipe de Astúrias naufragou e levou à morte mais de 440 pessoas, o que rendeu ao transatlântico o apelido de “Titanic brasileiro”.
Para se ter uma ideia da rapidez do naufrágio, o Titanic levou mais de duas horas para afundar completamente.
Foram resgatadas 143 pessoas que estavam no Príncipe de Astúrias e diversos cadáveres foram retirados do mar por um navio inglês que passou pelo local após a tragédia.
Mais de um século depois, a razão do naufrágio do Príncipe de Astúrias ainda é motivo de controvérsia.
O corpo do capitão José Lotina nunca foi encontrado, assim como o de seu primeiro oficial, Antônio Salazar Linas.
Especula-se que havia imigrantes europeus sendo transportados clandestinamente porque o número de sepulturas encontradas nas praias passou de mil.
O Príncipe de Astúrias
O salão de música do navio — Foto: Divulgação via BBC
O navio foi construído na Escócia, dois anos antes do naufrágio, em 1914, sob encomenda de uma companhia espanhola.
Ele tinha uma estrutura de duplo casco, assim como o Titanic. Essa tecnologia, na época, era considerada capaz de tornar a viagem mais rápida e segura.
O transatlântico era um navio misto: transportava pessoas e também cargas.
Na viagem que resultou na tragédia, além dos passageiros e tripulantes, a embarcação estava carregada com fios elétricos, vinho português, metais como estanho e cobre, e também 12 estátuas de mármore e bronze que tinham como destino o Monumento dos espanhóis (La Carta Magna y las Cuatro Regiones Argentinas), em Buenos Aires.
Acredita-se também que no navio havia 40 mil libras-ouro, porém elas nunca foram encontradas.
Veja a lista completa dos itens que estavam sendo transportado pelo transatlântico no dia da tragédia:
- 12 estátuas de bronze, destinadas ao Monumento dos espanhóis, do Parque Palermo, em Buenos Aires;
- 1.470 toneladas de peças de cobre; 668 toneladas de estanho; 25 toneladas de tungstênio; 150 toneladas de vanádio;
- 106 toneladas de cromite; 490 toneladas de fios elétricos de alta tensão; 260 toneladas de chapas de cobre; 960 toneladas de chumbo; 450 toneladas de aços especiais; 80 garrafões de mercúrio.
- Arsenal destinado à Marinha Argentina: 14 hélices de bronze de duas toneladas e nove hélices de uma tonelada; 20 âncoras de ferro de duas toneladas, 14 de uma tonelada e, ainda, 900 toneladas de correntes de ferro.
- Fardos de cortiça.
Mergulho difícil
Hoje, mais de 100 anos depois do naufrágio, muitos dos destroços do navio estão em uma profundidade de 9 a até 30 metros, no litoral norte de São Paulo, e é possível mergulhar no local para vê-los.
No entanto, a área é um ponto de mergulho desafiador devido à movimentação da água no local.
Além disso, a cor turva deixa o local onde estão os destroços mais escuro, o que pode confundir os mergulhadores – especialistas alertam para o risco de entrar nos destroços do navio sem perceber e se perder no local. Apenas profissionais experientes conseguem acessar a área.
Assim, durante os mergulhos, é difícil ver os restos do transatlântico com clareza. Entretanto, ainda é possível avistar itens que compunham o cenário, como banheiras, chuveiros e até mesmo encontrar itens que eram levados a bordo, como pratos e outros utensílios.
Mergulhador profissional há 35 anos, João Paulo Franco, de 52 anos, mais conhecido como Johnny, já visitou os destroços do Príncipe de Astúrias seis vezes.
“É um mergulho difícil porque é um local em que a água sempre está muito mexida, mesmo quando o mar está tranquilo. Mas é uma experiência muito interessante, é possível identificar onde eram a primeira e segunda classes, encontrar itens como as banheiras que tinham as cabines, e ver a parte das caldeiras e os porões. É um verdadeiro mergulho na história”, diz.
Materiais recuperados compõem museu
Museu Náutico foi inaugurado em Ilhabela em 2022 — Foto: MUSEU NÁUTICO DE ILHABELA/PLÁCIDO CALI/via BBC
Muitas dessas relíquias que estavam no Príncipe de Astúrias foram retiradas dos escombros pelos mergulhadores ao longo dos anos.
Elas e diversos itens encontrados na época do naufrágio por moradores do litoral compõem o Museu Náutico, que foi inaugurado em Ilhabela, em junho de 2022.
No museu, é possível encontrar talheres e pratos utilizados pelos hóspedes a bordo e até mesmo bonecas pertencentes a meninas que estavam viajando.
“Também foi recuperada uma das 12 estátuas de bronze, destinadas ao Monumento dos espanhóis, do Parque Palermo, em Buenos Aires. Hoje ela está no Museu da Marinha, no Rio Janeiro (RJ). Há mais peças retiradas do navio Príncipe de Astúrias, no momento em poder de particulares, e é objeto de Inquérito Civil e de processo no IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para que esse material seja destinado ao Museu de Ilhabela”, explica o historiador.
Cerca de 85 mil visitantes já passaram pelo museu desde a inauguração.