Miguel Lucena
“Ah! Podem voar mundo, morrer astros, que tu és como Deus: Princípio e Fim!…”, verseja a poeta portuguesa Florbela Espanca, no poema Fanatismo. É assim que os fanáticos veem seus ídolos, imaculados, sem defeitos, pois que o inferno são os outros, como dizia o filósofo francês Jean-Paul Sartre.
O ídolo nunca erra, abandona e trai. Todos têm de servir ao rei. Quem se rebelar cometerá crime de alta traição e deverá ser execrado, posto que a execução não é prevista em lei.
O fanatismo acomete pessoas dos dois lados ideológicos. Os seres humanos com compreensão política ficam no meio, vendo e ouvindo as balas passarem raspando.
“O meu ídolo nunca roubou e, se roubou, o fez por alguma razão”, justifica o fanático de esquerda. “O mito tem um plano em mente, ele é sábio, entregou o governo ao Centrão por algum motivo, protege os filhos por uma razão superior, abandona seus fieis aliados na prisão porque, como Deus, ele dá e ele toma, a recompensa virá depois, nem que seja em outra dimensão”, vocifera o fanático de direita.
Lembro-me de uma cena do filme O que é isso, companheiro: guerrilheiros urbanos, chamados de terroristas pelo regime militar, estão trancados em uma casa, isolados da sociedade, com as forças de segurança cercando de todos os lados, quando uma “companheira”, papel interpretado por Fernanda Torres, tenta animar os outros: “Dizem que, se rodar o último disco de Caetano de frente para trás, tem uma frase que diz: ‘Viva Marighella’”! “E quem já viu disco rodar para trás?”, questiona Fernando Gabeira, em papel desempenhado pelo ator Pedro Cardoso.