Renato Riella*
Jornalista
Tenho a mania de interferir em conflitos de rua. Missão perigosa! Isso acontece nos momentos mais banais, porque o destino não escolhe hora e lugar para quebrar a paz do mundo.
Foi assim quando parei numa barraca de frutas bem popular no Núcleo Bandeirante, em Brasília. Conheço o dono. É um nordestino gente boa, de chapéu de palha, sotaque forte – meio sisudo, parrudo.
Percebi que ele estava numa discussão perigosa, batendo boca com um rapaz dos 18 anos, alto e forte, com farda de escola.
Motivo: o jovem queria comprar uma maça. Somente uma. Tinha dinheiro, estava com vontade e pronto!
Mil vezes o vendedor disse que não. Explicou que o patrão (a banca tinha um dono?) só deixava vender embalagem de 12 maçãs. Nada de varejo.
E o estudante exigia e exigia apenas uma. Sacanagem! Não tem motivo para isso! Estava com forte desejo de lanchar maçã. E pronto, de novo!
Choviam palavrões despropositados e desproporcionais.
Enquanto eles se ofendiam, separei para mim uma cesta com a quantidade completa e fiquei esperando a vez.
As vozes iam se elevando. Pensei: por este quase nada, por esta falta de motivo, por uma banalidade fútil alguém pode virar vítima.
Pensei de novo: daqui a pouco o nordestino saca da peixeira. É assim que funciona. O normal é este. No Brasil, as pessoas morrem por 10 centavos, que ficam perdidos no chão. Você duvida disso?
De repente, no meu velho estilo, entrei em ação.
Estendi minha cestinha de maças para o quase menino, com braço duro, e disse forte: “TIRE UMA!”
O estudante vacilou! Falei mais forte: “Porra, cara, tire logo uma e acabe esta discussão!”
Dito e feito. Me viu com cara de pai (ou avô). Meio tremendo, pegou a fruta que ofereci.
Aí o jovem se encheu de orgulho e perguntou com ar desafiador: “Quanto lhe devo?”
Minha resposta, com riso emoldurado de ironia: “Epa! Ainda não entrei no ramo de vendedor de maçã, não, meu irmão! Não mesmo!”
De repente, estávamos os três na maior gargalhada, quase abraçados. Fui embora feliz. Mereço ganhar o Prêmio Nobel da Paz.
Saí de lá com a dúzia de 11 maçãs e uma história muito boba para contar, usando meu famoso vocabulário de 300 palavras e 20 palavrões. Vou acabar entrando na Academia Brasileira de Letras com tão poucas letras.
No caminho até o carro, parei e mergulhei num passado de quase 60 anos. Tenho mesmo mania de me meter nas histórias dos outros – que são ótimas.
Fechando os olhos, me vi com 13 anos de idade, dentro de um ônibus meio lotado, em Salvador, a caminho da escola.
Paguei a passagem e me sentei no banco adiante da borboleta. De repente, estoura o maior zazuê atrás de mim.
Uma mulher de meia idade, mulata, meio cheinha, baiana comum, estava armando barraco porque o cobrador não tinha o troco de dez centavos.
Durante longo tempo, o rodoviário tentava explicar que no início do trajeto ainda faltavam moedas no seu caixa. E ela respondia com discurso político de baixo nível, denunciando a desonestidade das empresas de ônibus e até dizendo que o pobre cobrador estava ficando rico: “De migalha em migalha a galinha enche o papo”.
Eu, criança, indo pra escola sozinho, perfumado, tomado banho, e confiante na vida, via todo este mundo de felicidade e fé sendo quebrado por um conflito de Faixa de Gaza.
De repente, indignado, me voltei para trás. Fiquei ajoelhado no banco, estiquei a mão com uma moeda e disse com voz bem firme à passageira:
-Pronto. Tome aqui o seu troco!
A mulher virou uma jararaca prima da cascavel. Deu leve toque no meu braço e fez os dez centavos se perderem no chão. Passou violentamente pela borboleta e, a dois metros de distância, começou a me esculhambar – b-abá-b-abá.
–Riquinho, metido a besta, pensa que pode me humilhar. E ainda fica protegendo este cobrador bandido. Vocês todos são iguais. Desonestos. Acham que nós somos cachorros, etc, etc, etc.
Magrinho, branquinho, de óculos, com minha fardinha chique dos Maristas, fiquei vermelho, roxo, amarelo, invisível…enquanto o ônibus todo (até o cobrador, desleal) ria de mim.
Na distância de décadas, consigo ver velhinhos a caminho do trabalho, mocinhas com fardas de lojas, estudantes meninos e meninas, soldados e outros tipos baianos (tinha até um padre), olhando pra mim e gargalhando, diante da lição que a mulher me deu.
Acho que desci antes do ponto.
Mas não me emendei. Sessenta anos depois, entrei na “guerra da maçã”. Incorrigível!
RENATO RIELLA