16 fevereiro 2021
Uma estudante etíope contou à BBC como perdeu a mão direita para se defender de um soldado que tentou estuprá-la — e que também tentou forçar seu avô a fazer sexo com ela.
A jovem de 18 anos, que pediu para não ser identificada, está internada na região de Tigray, no norte da Etiópia, há mais de dois meses, se recuperando do que lhe aconteceu.
O conflito no Tigray, que eclodiu no início de novembro de 2020 quando o primeiro-ministro Abiy Ahmed lançou uma ofensiva para derrubar o partido governante da região, o TPLF, depois que seus combatentes capturaram bases militares federais, destruiu seus sonhos e os de muitos de seus colegas de classe.
A maioria deles, junto com outras famílias em sua cidade, fugiu para as montanhas — mesmo depois que Abiy, que venceu o Prêmio Nobel da Paz, declarou vitória após a captura da capital de Tigray, Mekelle, pelas forças federais em 29 de novembro.
Isso porque as forças de segurança iniciaram uma operação para caçar membros da TPLF que se recusaram a se render, o que resultou em alegações de graves abusos dos direitos humanos cometidos contra os moradores de Tigray. As autoridades negam as acusações.
A jovem e seu avô permaneceram em sua casa na cidade de Abiy Addi, cerca de 96 km a oeste de Mekelle, porque era difícil para eles viajarem para longe.
No dia 3 de dezembro, a jovem disse que um soldado, vestido com uniforme militar etíope, entrou em sua casa exigindo saber onde estavam os combatentes antigoverno.
Depois de vasculhar a casa e não encontrar ninguém, ele ordenou que se deitassem em uma cama e começou a atirar em volta dela.
“Ele então ordenou que meu avô fizesse sexo comigo. Meu avô ficou muito zangado e eles começaram a brigar”, diz ela.
O soldado, diz ela, levou o idoso para fora dali e atirou nele nos ombros e na coxa e depois voltou dizendo que o havia matado.
“Ele disse: ‘Ninguém pode salvá-la agora. Tire a roupa.’ Eu implorei a ele que não o fizesse, mas ele me deu vários socos.”
A luta continuou por vários minutos — embora ela se sentisse desorientada com os golpes — e no final ele ficou com tanta raiva que apontou a arma para ela.
“Ele atirou na minha mão direita três vezes. Ele atirou na minha perna três vezes. Ele saiu quando ouviu um tiro do lado de fora.”
Felizmente, seu avô ainda estava vivo, embora inconsciente, e por dois dias eles permaneceram intimidados e feridos em sua casa, com muito medo de procurar ajuda.
‘Sem justiça’
O relato da adolescente corrobora as preocupações sobre relatos de estupros em Tigray, expressos por Pramila Patten, a enviada da ONU sobre violência sexual em conflito.
Ela disse que havia “relatos perturbadores de indivíduos supostamente forçados a estuprar membros de suas próprias famílias, sob ameaças de violência iminente. Algumas mulheres também foram supostamente forçadas por elementos militares a fazer sexo em troca de produtos básicos, enquanto os centros médicos indicaram um aumento na demanda por contracepção de emergência e testes para infecções sexualmente transmissíveis, o que muitas vezes é um indicador de violência sexual em conflito.”
Três partidos de oposição em Tigray disseram que assassinatos extrajudiciais e estupros coletivos se tornaram “práticas cotidianas”, citando também o caso de um pai forçado a estuprar sua filha sob a mira de uma arma.
Um médico e um membro de um grupo de direitos das mulheres — ambos os quais desejam permanecer anônimos — disseram à BBC em janeiro que ouviram relatos de pelo menos 200 meninas menores de 18 anos em diferentes hospitais e centros de saúde em Mekelle que disseram ter sido estupradas.
A maioria delas alegou que os perpetradores usavam uniformes do exército etíope — e depois foram advertidas a não buscar ajuda médica.
“Elas têm hematomas. Algumas são até estupradas por gangues. Uma foi feita refém e estuprada por uma semana. Ela nem se reconhece. E não há polícia, portanto, nenhuma justiça”, disse o médico.
O ativista de direitos humanos disse: “Também ouvimos histórias chocantes semelhantes de estupro em outras partes de Tigray. Mas, por causa dos problemas de transporte, não pudemos ajudá-los. É muito triste.”
Outro médico que trabalha em um hospital em Mekelle disse que recentemente cinco ou seis mulheres por dia têm ido ao hospital em busca de medicamentos anti-HIV e anticoncepcionais de emergência relacionados a alegados estupros.
Em entrevista à BBC, Weyni Abraha, que pertence ao grupo de direitos das mulheres de Tigray Yikono (“Basta”, em português) e esteve em Mekelle até o fim de dezembro, disse acreditar que o estupro está sendo usado como arma na guerra.
“Muitas mulheres foram estupradas em Mekelle. Isso está sendo feito de propósito para quebrar o moral das pessoas, ameaçá-las e fazê-las desistir da luta.”
O chefe do Exército da Etiópia, Birhanu Jula Gelalcha, negou tais acusações.
“Nossas forças de defesa não estupram. Não são bandidos. São forças do governo. E as forças do governo têm ética e regras de engajamento”, disse ele à BBC.
Atakilty Hailesilasse, recém-nomeado prefeito interino de Mekelle, disse que os números citados por grupos de direitos humanos são grosseiramente exagerados.
O governo recentemente enviou uma força-tarefa à Tigray para investigar mais as alegações, incluindo pessoas dos ministérios da Mulher e da Saúde e do gabinete do procurador-geral, que indicaram que estupros ocorreram, embora seu relatório completo ainda não tenha sido divulgado.
Na semana passada, a Comissão de Direitos Humanos da Etiópia disse que 108 casos de estupro foram registrados nos últimos dois meses em toda a região de Tigray, embora tenha admitido “estruturas locais, como polícia e centros de saúde, onde as vítimas de violência sexual normalmente recorrem para denunciar tais crimes não estão funcionando”.
‘Queria ser engenheira’
A BBC foi contatada por um médico sobre o caso da adolescente Abiy Addi, depois que ele amputou sua mão.
Ela e seu avô lhe contaram como foram encontrados dois dias após o ataque de soldados eritreus que vasculhavam a área — embora tanto a Etiópia quanto a Eritreia neguem o envolvimento da Eritreia no conflito de Tigray.
Eles disseram que os eritreus cuidaram de seus ferimentos — e os entregaram às tropas etíopes, que os levaram para Mekelle quando o hospital em Abiy Addi foi fechado.
O avô já se recuperou dos ferimentos, mas sua neta ainda precisa de tratamento após a amputação. Sua perna direita permanece engessada.
Ela falou à BBC de sua cama de hospital, chorando sobre seus sonhos perdidos.
Em seu último ano de escola antes do início da guerra, sua ambição era ir para a universidade para estudar engenharia e embarcar em uma carreira que lhe permitiria cuidar de seu avô, que a criou desde a morte de sua mãe.
Seu avô, ao lado da cama, tentava acalmá-la enquanto ela soluçava: “Como isso será possível? Não posso ser o que pensei que seria”, lamentou a jovem. (BBC NEWS BRASIL)