Aldo Lopes de Araújo
O homem é desocupado e tem antecedentes criminais, bebe, fuma, usa drogas ilícitas e um casaco de moletom com capuz por causa do sereno, mas não tem recursos para pagar a fiança, muito menos a quem comunicar a sua prisão. Desconhece ou talvez nem tenha família e mora nas ruas desde criança. No dia 14 do mês em curso, vagando a esmo pelo bairro do Alecrim, ele viu uma porta aberta e entrou na casa da vítima que estava distraída ao pé da televisão assistindo ao programa do Papinha. Temendo ser flagrado, acabou vazando, não sem antes subtrair uma gaiola com dois periquitos australianos, ambos condenados à prisão perpétua e ao exílio, sem necessidade de legalização junto ao órgão de proteção ambiental.
Interceptado pelos PMs da ROCAM ainda nas imediações da casa, o investigado não ofereceu resistência ao perceber que estava sendo esmagado pela sombra de quatro tartarugas ninjas de farda e coletes à prova de balas. Além de não espernear, ainda se declarou arrependido e disposto a devolver a gaiola, mas foi algemado e levado para a Delegacia de Plantão da Zona Sul. A gaiola com os dois pássaros virou matéria de prova para a lavratura do flagrante, e assim o homem acabou retirado de seu habitat natural, o bairro onde vive desde filhote e por onde perambula coletando restos de comida nos latões de lixo, surrupiando brinquedos nas calçadas, bicicletas, um pneu, uma gaiola no muro, uma manga no pé, qualquer coisa que dê sopa.
O suposto delito, em tese, de furto, e pois sem violências ou grave ameaça e, a nosso ver, de bagatela, posto que de pouca ou nenhuma repercussão no patrimônio da vítima, a não ser que se tente aferir o valor afetivo que os pássaros representam para a Senhora X, dona da casa, cujo franciscano amor pelos psitacídeos, salvo melhor juízo, não devia se contrapor ao calvário de um morador de rua que vive na corda bamba entre conseguir a boia e despistar a polícia, na dramática luta que empreende todos os dias em busca da sobrevivência.
Nesse sentido, a prevalecer um indiciamento contra o investigado, consagra-se a ideia de vingança do Estado perante os cidadãos que não foram convidados para a festa e ficaram de fora arranhando os carros, fumando bosta de rato em seus cachimbos podres. Esses mal-assombrados zanzam pelas ruas como zumbis, e a cadeia ainda é a fórmula encontrada pelos tecnocratas do Governo para fugir da responsabilidade pelo tratamento clínico deles, pela remoção dessas criaturas que se acumulam como lixo nas vergonhosas cracolândias das cidades do Brasil.
Autuado em flagrante, o homem foi conduzido ao ITEP para comprovar que estava vivo e sem ferimentos, e em seguida, por não ter dinheiro para pagar a fiança, foi despachado para um Centro de Detenção Provisória. E assim, acabou movimentando a cara máquina estatal dos órgãos de segurança e da estrutura judiciária, quando um simples despacho fundamentado de uma autoridade teria evitado esse moído. Para isso existe o papel, essa incrível e milenar invenção humana que suporta tudo.
Delegado é antes de tudo um coletor de provas, escutador de testemunhas, vai aos poucos juntando as peças do mosaico, construindo a trama com o auxílio luxuoso de quem liga para o disque-denúncia, ou com a mancada do suspeito quando cai em contradição no depoimento, mas a melhor contribuição para a derrubada do serviço do autor do crime é a jurisprudência dos policiais de rua e o tirocínio dos chefes de investigação.
Neste caso em particular, não consigo jogar a primeira pedra, não sofro desse impulso bíblico, tampouco sou legalista a ponto de buscar arrimo em leis cafonas e inadequadas à nossa realidade. Qualquer homem médio — que teve instrução para decorar sonetos e ler a tabuada, como disse Graciliano Ramos — percebe que o usuário de drogas estando “fumado”, é tido quase como inimputável, não mede o grau de reprovabilidade de sua conduta. Sei que a lei não entende dessa forma. Problema dela.
Em razão disso, certo ou errado, penso ter cumprido minha tarefa, e peço vênia à dona dos periquitos australianos, a Vossa Excelência, ao Promotor de Justiça e a Charles Darwin no Paraíso, rogando para que não me queiram mal por não ter indiciado um homem que em seu processo evolutivo acabou inferior a um cão de rua a se esgueirar dos faróis blindados da sociedade de consumo desta Capital, da qual a circunscrição da 13ª Delegacia é parte considerável.