Na cozinha da nossa casa, uma receita de saudade.
Por: Marival Correa
Para essa receita você vai precisar de porções generosas de lembranças afetivas. Vai precisar de um monte de coisas, um carrinho cheio de suas melhores recordações. Cortes cirúrgicos em eventuais ressentimentos, fogo brando pra aquecer o coração na medida certa. E, melhor ainda, não tem problema algum se o prato ficar salgado demais (por lágrimas incontidas) ou doce demais (igual fruta madura no pé, igual sorriso de mãe). Não importa o jeito, a melhor comida deste planeta é a comida da nossa casa, feita por nossas mamães ou por nossas vovós.
A cozinha é um reduto mágico, seja ela qual for. Desde os tempos do café coado na “mariquinha”, desde os tempos em que alimentos eram conservados em latas, desde quando fogão e geladeira coloridos formavam um jogo lúdico de onde saíam as tais poções mágicas produzidas por mãos ágeis e habilidosas.
E nos tempos de criança, qual a casa não tinha um bom e velho livro de receitas? Ou um caderno que fosse, onde anotavam-se aquelas receitas que uma “bisa” lá atrás, com sua sabedoria inigualável, havia ensinado?
Podia ser um simples e mítico bolinho de chuva, um bolo de fubá daqueles que preenchiam nossa alma de sabores inebriantes, aquela macarronada de domingo, um frango ao molho, aquele feijãozinho com torresmo que fazia a gente até suspirar… Incontáveis e incontáveis pratos que fazem nossas memórias darem piruetas no céu da nossa infância.
Depois, em 1940, quando a Companhia Editora Nacional lançou “Dona Benta: Comer Bem”, um novo objeto passou a se fazer presente nos lares brasileiros. Próximo às louças, às xícaras e canecas, sobre um aparador, ou uma simples mesinha de fórmica; ao lado de um ‘guarda-comida’ ou uma cristaleira. Não importava qual fossem os móveis e utensílios, mas todos eles passaram a ganhar a companhia deste livrão de receitas com a cara de uma simpática vovó ilustrando a capa.
“Dona Benta”, na verdade, é um coletivo de diferentes autores que escreveram essa obra com 42 categorias e mais de 1,5 mil receitas.
Desigualdades de gênero
De certa forma, pode-se dizer que o livro sintetiza muito o espírito de uma época em que as mulheres eram “educadas” para serem donas de casa. Mulheres “do lar”, um conceito ultrapassado e enraizado em nossa sociedade que tem reflexos ainda nos dias atuais e que responde muito pelas desigualdades de gênero.
Mas, feita esta observação, o sumário do livro é uma preciosidade e vai desde uma lista básica, daquelas que atende bem aos casais à beira do altar, passando pela tradicional família brasileira com o capítulo ‘Almoço e Jantar’. As ideias de cardápios variados e usando todo tipo de ingrediente deixa muito youtuber, blogueiro(a) e afins atual no chinelo.
Tem até a ordem clássica de um cardápio (do aperitivo, sopa, prato de copa, peixes, entradas frias, etc aos cafés, charutos e licores). É possível até aprender um pouco de matemática com as medidas exatas anotadas ali, um pouco de português com a grafia precisa de algumas palavras e acentuações, idem.
Claro que não é necessário um livrão destes para tornar uma cozinha completa. Uma cozinha de verdade, que captura aromas e sabores indescritíveis que vão pra dentro de nossas lembranças mais ternas, tem alma como ingrediente principal.
Em outras palavras, não é o que se cozinha, mas quem cozinha. Em outras palavras, não é o que vai ao fogo, mas quem leva aqueles ingredientes ao fogo de um jeito que nos completa de modo infinito. É aquilo que tem gosto de família reunida, de ruídos em cada centímetro quadrado da mesa, risadas incontroláveis, o carinho em cada garfada.
Dona Benta – o livro – e todas as donas Bentas que estão ou que já passaram por nossas vidas é que são o melhor capítulo de qualquer livro de receita. Um livro temperado por nossas melhores memórias da infância, com nossos irmãos, irmãs, nossas mamãe, tias, tios e avós ali, garantindo que a vida siga em frente. Com a mesma simplicidade de um bolinho e um bom café passado na hora.