Frutuoso Chaves*
Escapei no domingo quando o sol, no ponto mais baixo do horizonte, metade da cara fora do mar, ainda espreitava o mundo. Onde estacionei, à beira do calçadão, ele quase nada via, além de mim, numa Manaíra deserta.
Ali, naquele instante, a movimentação maior vinha das folhas dos coqueiros sopradas por ventos tão indecisos quanto eu e, quem sabe, também, os ocupantes dos três carros que por mim passaram em marcha lenta. Apesar de saber de obrigações e compromissos em qualquer horário, eu sempre imagino que somos todos errantes às 4 e 30 da manhã.
Máscara a postos, álcool no tanque e nas mãos, saí dali em direção ao centro da cidade igualmente vazio. E isso me agradava, porquanto não pretendia parar nem falar com ninguém. Pássaro liberto, fugido de uma gaiola de cinco meses, era como eu me sentia.
Cheguei no pátio da Capela do Socorro, antes das 6 horas, momentos depois de haver decidido esticar o percurso, assim, de improviso. Ali, também, nenhuma viva alma, no que pese o hábito de madrugar dos que vivem no campo.
Brisa fresca e leve, folhas ainda orvalhadas, o cruzeiro com seus traços coloniais e a igrejinha caiada, telhas e piso avermelhados, como se recém-construída.
Olhei aquilo tudo e senti, ao ponto do arrepio, a presença do incrível Odilon Ribeiro Coutinho. Era coisa que ia além da mera lembrança. Era algo, sem dúvida, mais incisivo, o que incomodava a mim, um sujeito sem muitos credos nem profissões de fé.
Mas, pensando bem, não poderia ser outro, nem menor, meu sentimento, a sensação assim então manifesta, o sentir com véus de algum mistério. Afinal, fora por conta dessa e de outra capela, a da Batalha, que eu conheci Odilon.
Cheguei até ele, pela primeira vez, em data que não lembro, com pauta do editor Josélio Gondim. A entrevista renderia, na semana seguinte, matéria de capa da revista “A Carta”, a que dei o título “Íntimo dos Santos”.
Odilon havia decidido reconstruir as duas capelas advindas do fim do período da invasão holandesa com desembolso pessoal. Desistiu da empreitada, pouco tempo depois da entrevista, ao saber que isso lhe custaria os olhos da cara numa época de vacas magras para as usinas de açúcar, a sua, inclusive.
Além do mais, prestígio pessoal era o que não lhe faltava. Meses depois da ideia, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional vinha em seu socorro. No dele e, evidentemente, da memória e da história da Paraíba e sua gente.
Facilitaram os entendimentos, sem dúvida, o fato de Humberto Lucena, paraibano de quatro costados, presidir o Congresso Nacional. Tanto é o que o Iphan também acudia, quase no mesmo momento, a antiga Casa de Câmara e Cadeia de Pilar, ambiente que recebeu Dom Pedro II.
O Rio Paraíba, numa de suas maiores enchentes, havia derrubado um pedaço da fachada desse prédio, levado ruas inteiras da cidade de Cruz do Espírito Santo, os canaviais de Santa Rita e deixado metade da nave da Capela da Batalha em suspensão, a três metros do leito, depois que as águas baixaram. Também não lembro quanto tempo durou o processo das restaurações. Mas foram feitas.
Hoje, as duas capelinhas erguem-se como testemunhas vivas da história, à pequena distância de João Pessoa. Ambas resultaram de promessa feita por um ajudante do Capitão Rebelinho, cujo grupo havia emboscado um contingente inimigo, no período da invasão holandesa,
Ainda celebrando o sucesso da empreitada, esses homens foram surpreendidos pelo ataque inesperado de uma tropa invasora que, em maior número, deles se aproximava. O mesmo Rio Paraíba, cheio, impedia-lhes a fuga. Só restava recorrer aos Céus.
E foi, exatamente, o que fez o auxiliar do Capitão. Prometeu erigir duas igrejinhas, se dali ele e seus companheiros saíssem com vida. Nesse momento, o Índio Filipe Camarão chegava ao local à frente de outro bando armado. Apanhados em fogo cruzado, os holandeses fugiram.
Foi dessa promessa que surgiram ambas as capelas. O saudoso Odilon contava essa e outras histórias do gênero como ninguém. Ele tinha o Vale do Rio Paraíba – ali incluídos os engenhos de açúcar de Pilar e São Miguel de Taipu, palco de romances de José Lins do Rego – como área de profunda evocação lírica e histórica.
Odilon disse-me, certa vez, que Gilberto Freyre tinha no alpendre da Capela do Socorro (também usada por trabalhadores rurais para dois dedos de prosa, a caminho do eito) uma das provas cabais da intimidade que os nordestinos estabeleceram com os santos de suas devoções. Que falta nos fazem homens como ele.
Odilon Ribeiro Coutinho, oriundo de tradicional família de políticos e usineiros paraibanos, morreu, em 2000, aos 77 anos de idade. Elegeu-se deputado federal em 1962 pelo PDC do Rio Grande do Norte e ingressou no MDB quando o Regime Militar de 1964 impôs o bipartidarismo à Nação. Nessa última legenda, sofreu derrotas ao cabo das campanhas de 1966 e 1970. Disputou, sem êxito, sua última eleição em 1982, para o Senado, desta vez pelo PMDB.
Odilon fez parte da diretoria do Instituto Teotônio Vilela, com sede em Alagoas, e presidiu o Instituto Joaquim Nabuco, instalado no Recife. Na Paraíba, ele fundou, em 1988, o PSDB, de cujo diretório foi presidente por duas vezes.
Nome de expressão regional, sempre foi aqui mais lembrado por sua atuação no campo da história, da sociologia e da literatura, o que lhe valeu o assento na Academia Paraibana de Letras.
Na mocidade, aluno da Faculdade de Direito e presidente da União de Estudantes de Pernambuco, amargou a cadeia várias vezes em razão da luta contra o Estado Novo. Integrou, ao lado de expressões como Graciliano Ramos e José Lins do Rego, o grupo de intelectuais e escritores nordestinos que se reunia em torno de Gilberto Freyre.
Era um homem de larga formação humanística. O País o teve na composição da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, o grupo de notáveis responsáveis pela concepção do anteprojeto tomado como parâmetro para a própria Assembleia Constituinte, aquela que gestou a Constituição Cidadã de 1988.