Marcelo Torres
Quando Ferreira Gullar disse que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”, logo veio José Cândido de Carvalho e completou: “a vírgula também não”. Mas o que será que queria dona Clarice Lispector, quando iniciou um seu livro com esse sinalzinho de pontuação? Aliás, a biografia dela, escrita pelo americano Benjamin Moser, tem o emblemático título de “Clarice,” — que se lê “Clarice-vírgula”.
Para o cronista gaúcho Luis Fernando Verissimo, “vírgulas são como confeitos num bolo, a serem espalhadas com parcimônia nos lugares onde fiquem bem e não atrapalhem a degustação”, mas o poeta Mário Quintana, outro gaúcho, constatava que “os velhos, quanto mais velhos, mais vírgulas usam”.
É preciso cuidado, muito cuidado com a vírgula, como nos mostra a Associação Brasileira de Imprensa. Num anúncio institucional veiculado em 2008, celebrando seus cem anos de fundação, a entidade mostrou que uma vírgula, uma reles vírgula, pode mudar tudo. No filme, a voz do ator Matheus Natchtergaele, reforçada por legenda, diz que “vírgula pode ser uma pausa… ou não”: quando se diz “não, espere”, trata-se de uma pausa, com um pedido para alguém esperar, mas se não há vírgula na frase — “não espere” —, aí vira uma ordem, uma ordem para seguir, não esperar.
Ela, a vírgula, pode criar heróis: em “isso só, ele resolve”, é uma coisa fácil, pequena, que ele resolve sem grande esforço, mas se você retira a vírgula — “isso, só ele resolve” —, ele passa a ser a única pessoa no mundo que pode ser resolver a questão, ou seja, um herói. Outras duas frases usadas no filme são: “aceito, obrigado” e “aceito obrigado” — enquanto na primeira a pessoa aceita de bom grado, e até se diz grato, na segunda ele só aceita porque é obrigado a aceitar.
O anúncio mostra ainda que uma simples vírgula, assim como pode criar heróis, também pode criar vilões. Na frase “esse, juiz, é corrupto”, você está falando com o juiz sobre um terceiro, que seria o corrupto; mas se tirarmos as duas vírgulas — “esse juiz é corrupto” — aí você está dizendo que é o juiz que é o corrupto. E se cria herói ou vilão, a vírgula pode, é claro, condenar ou salvar alguém, como respectivamente em: “não tenha clemência!” e “não, tenha clemência!”. Então, arremata o anúncio: “Uma vírgula muda tudo. ABI, 100 anos lutando para que ninguém mude nem uma vírgula da sua informação”.
Tudo isso é trazido aqui a propósito de uma conversa de mesa de bar, um dia desses, quando um dos presentes fazia a comparação entre uma frase popular e o título de uma música de Chico César: da expressão “respeitem meus cabelos brancos” — que é falada, em geral, por quem se assume mais velho, mais vivido, mais experiente — fez-se a canção “Respeitem meus cabelos, brancos”, frase-paródia dita por alguém de pele parda ou preta (como o compositor Chico César) para pessoas brancas. Curiosamente, o falante era um moço loiro, de seus vinte e poucos anos, a pele branca como vela. Assim ele falou o título da música: “Respeitem meus cabelos, vírgula, brancos”. E repetiu umas quatro vezes. A vírgula, assim falada por ele, virava aposto, no meio de outras vírgulas, separando o vocativo. Viva a vírgula!