
Miguel Lucena
O papel aceita tudo, dizem. E às vezes aceita o inaceitável. Numa petição que deveria versar sobre fatos e argumentos, um advogado do Rio de Janeiro resolveu destilar ódio — não contra as ideias da juíza, mas contra a sua pele. Escreveu, sem rubor, que a magistrada era “afrodescendente com resquícios de senzala e recalque ou memória celular dos açoites”.
Não é figura de linguagem. É figura do racismo. Uma chibata invisível que tenta se travestir de eloquência. O que esse advogado escreveu não é só uma ofensa pessoal — é um grito do Brasil que ainda se recusa a olhar no espelho.
O que esse senhor não sabe — ou finge não saber — é que sua caneta não é espada. E que a toga da juíza não apaga, mas honra a sua ancestralidade. A senzala, afinal, está nele.
Que não nos acostumemos. Que a lei, que ele tentou usar como escudo, o alcance com a mão firme da justiça. Porque o papel aceita tudo, mas a sociedade não deve aceitar qualquer coisa.