O estudo “Cuidado de saúde à Covid longa: necessidades, barreiras e oportunidades no município do Rio de Janeiro” deixa claro que a condição se constitui em um problema de saúde pública, mas é pouco reconhecido e inadequadamente tratado

Por Margareth Portela, Bárbara Caldas, Emma Louise Aveling
Em 2020, primeiro ano da pandemia de COVID-19, a comunidade científica internacional já se dava conta de que um número significativo de pacientes infectados pelo vírus SARS-CoV-2 mantinha, após a fase aguda da doença, sintomas ou sequelas duradouros e muitas vezes incapacitantes. A nova condição crônica associada à Covid-19 foi denominada Covid longa, condição pós-Covid ou síndrome pós-Covid.
Recentemente, uma equipe de pesquisa da qual fazemos parte divulgou novas informações provenientes do estudo que fizemos sobre o panorama da Covid longa na cidade do Rio de Janeiro.
A pesquisa “Cuidado de saúde à Covid longa: necessidades, barreiras e oportunidades no município do Rio de Janeiro” deixa claro que a condição se constitui em um problema de saúde pública, mas é pouco reconhecido e inadequadamente tratado.
A Covid longa corresponde à persistência ou aparecimento de novos sintomas após a Covid-19, com duração de pelo menos três meses. Faz parte do conjunto de condições crônicas associadas à infecção que têm sido historicamente deixadas de lado. Podendo interferir na capacidade laboral das pessoas e incorrer a necessidade de cuidados de saúde, a C longa pode custar muito aos pacientes e suas famílias, ameaçando intensificar desigualdades de saúde, sociais e econômicas.
O estudo que realizamos buscou estimar os impactos desta condição na saúde e na vida das pessoas e obter evidências para subsidiar recomendações para que o Sistema Único de Saúde (SUS) possa melhorar o cuidado àqueles que vivem com Covid longa.
Para isso, reunimos pesquisadores com diferentes áreas de expertise e garantimos a participação de pesquisadores vivendo com Covid longa. Desenhamos um estudo abrangente usando métodos quantitativos e qualitativos, e coletamos dados com diversos grupos de participantes entre novembro de 2022 e abril de 2024. Ouvimos pessoas que estiveram internadas por quadro agudo de Covid-19 em hospitais do SUS, profissionais do SUS e pessoas que vivem com Covid longa.
Em diversas fases do estudo, divulgamos produtos compartilhando como nossa pesquisa foi realizada, como um vídeo com as coordenadoras do projeto, o artigo sobre como buscamos promover equidade, diversidade e inclusão no inquérito, e o protocolo do componente quantitativo.
4 em 10 autorreportaram Covid longa
Entre o grupo de pessoas que estiveram internadas, a prevalência de sintomas de Covid longa mostrou-se elevada. Os mais frequentes foram fadiga, exacerbação dos sintomas após esforço, dor nas articulações, alterações no sono e comprometimento cognitivo.
Quase 40% das pessoas deste grupo autorrelataram Covid longa. Apesar desta estatística e da alta carga de sintomas de Covid longa observada, apenas 8% receberam um diagnóstico da condição por um profissional de saúde. Isso possivelmente reflete a limitada conscientização e compreensão da Covid longa.
Estima-se que cerca da metade das pessoas que estiveram internadas por Covid-19 tiveram necessidades de serviços de saúde nos seis meses que precederam a entrevista por problemas que apareceram ou pioraram após a fase aguda da infecção.
Em ordem decrescente, os serviços mais citados e buscados por esses pacientes foram o atendimento por médicos especialistas, farmácia, cuidados da atenção primária, serviços laboratoriais e exames de imagem.
Dificuldades para acessar o atendimento
Observou-se um uso elevado dos serviços de saúde, principalmente por meio do SUS. Porém, para alguns serviços, como médicos especialistas e exames de imagem, as entrevistas revelaram uma lacuna expressiva entre a necessidade e o uso.
Longas filas de espera e impossibilidade de agendamento foram barreiras ao atendimento no SUS muito reportadas para ambos os serviços. Também foi muito mencionada a não disponibilidade no SUS de alguns medicamentos necessários.
Mais de 55% das pessoas que usaram serviços médicos especializados recorreram ao setor privado, o que denota desigualdades de acesso mesmo com um sistema de saúde universal.
Menos demandados no conjunto, merecem ainda destaque os serviços de reabilitação e de saúde mental, somente utilizados por pouco mais da metade daqueles que declararam necessidade. No caso dos serviços de saúde mental, mais de 70% dos que utilizaram o fizeram no setor privado.
Fatores que obstruíram o acesso aos cuidados necessários foram identificados a partir das entrevistas qualitativas com profissionais do SUS e pessoas que vivem com síndrome pós-Covid.
Destacamos, por exemplo, a sobrecarga do sistema de saúde decorrente dos atendimentos represados durante a pandemia, a coleta inadequada de dados sobre a ocorrência da Covid longa, e a falta de conhecimento dos profissionais de saúde sobre a síndrome pós-Covid, incluindo descrença de alguns profissionais sobre sua real existência.
Fato é que as novas demandas decorrentes da Covid longa se somaram a outras rotineiras sobre serviços que já possuíam gargalos reconhecidos.
As clínicas pós-Covid que estavam disponíveis no SUS na cidade do Rio de Janeiro foram uma inovação positiva com potencial de oferecer atendimento multidisciplinar especializado. No entanto, apesar da elevada necessidade de cuidados que identificamos, elas foram subutilizadas (relatos consistentes de ociosidade em muitas vagas para consultas). Surpreendeu a nossa equipe o desconhecimento de muitos participantes acerca da existência das clínicas pós-Covid no SUS.
Outros fatores impediram a prestação de cuidados pós-Covid para pacientes com acesso bem-sucedido à atenção primária e/ou especializada. Sem um protocolo claro para o tratamento e gerenciamento da síndrome pós-Covid ou treinamento, os médicos estavam mal equipados para oferecer um atendimento efetivo.
Para as pessoas com Covid longa que foram acompanhadas na atenção especializada, os problemas de comunicação entre os serviços tornaram a coordenação do cuidado pela equipe da atenção primária quase impossível. Além disso, nem os gestores nem os profissionais da linha de frente tinham conhecimento das notas técnicas relevantes sobre Covid longa emitidas pelo Ministério da Saúde desde o final de 2021.
Consequências profundas no dia-a-dia
A síndrome pós-Covid causou mudança radical na vida das pessoas que têm que lidar com impactos negativos significantes, além daqueles diretamente relacionados à sua saúde.
Pessoas relataram não conseguir mais trabalhar ou ter que reduzir as horas de trabalho, mas raramente tinham acesso a benefícios formais/licença médica. A limitação de “energia” também impactou a realização das atividades da vida diária, como tarefas domésticas e levar os filhos à escola. Muitos relataram não conseguir acessar os cuidados de que precisavam por meio do SUS; gastando frequentemente a renda reduzida em serviços privados e medicamentos.
Nossos dados qualitativos sugerem que as dificuldades que as pessoas tiveram para obter atendimento ou compreensão sobre seus sintomas de síndrome pós-Covid por parte de amigos, empregadores e familiares foram fontes adicionais de sofrimento.
Como o SUS pode proporcionar cuidado adequado à Covid longa?
No Brasil, a imprensa registrou os primeiros dados sobre as sequelas da doença em fevereiro de 2021, em pacientes internados em hospitais de excelência, predominantemente privados.
Quando veio o grande pico da pandemia no país, em março de 2021, as respostas ao problema emergente e a outros já acumulados sem assistência foram postergadas pela crise instalada. Nesse período, o país chegou a registrar mais de 3.000 óbitos diários.
O início da vacinação, em janeiro de 2021, cumpriu o papel de reduzir a gravidade da doença e, consequentemente, a necessidade de hospitalização dos pacientes. No entanto, sintomas posteriores à Covid-19 continuavam emergindo. Além disso, constatou-se que muitas vezes os sintomas de Covid longa apareciam até mesmo depois de quadros leves da infecção aguda.
Conforme já mencionado, nosso estudo evidencia que a síndrome pós-Covid é um problema de saúde relevante que ainda é pouco diagnosticado e cuidado de modo adequado. Pressiona gargalos conhecidos do sistema de saúde e redunda em desigualdades no acesso a serviços mesmo em um sistema de saúde universal, como o SUS.
Esforços recentes do Ministério da Saúde no sentido da expansão dos serviços de especialistas e da maior cobertura e gratuidade de medicamentos e insumos na Farmácia Popular do Brasil podem mitigar alguns dos problemas detectados relacionados à oferta de serviços. Iniciativas para ampliação de serviços de reabilitação e saúde mental também são necessárias.
Uma resposta adequada do sistema de saúde à Covid longa, no entanto, exige esforços além da ampliação da oferta de serviços. Isso inclui, entre outras medidas, a educação dos profissionais de saúde para melhorar o diagnóstico e provisão adequada de cuidado; a melhoria da vigilância em saúde para detectar a síndrome pós-Covid; e a escuta dos pacientes pelos profissionais da linha de frente, validando suas experiências e traçando planos de modo conjunto e individualizado para o cuidado de saúde e o apoio social necessários.
*Margareth Portela é bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto foi financiado pelo Harvard University Lemann Brazil Research Fund e pelo Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
*Bárbara Caldas teve a participação no projeto financiada pelos recursos recebidos do Harvard University Lemann Brazil Research Fund.
*Emma-Louise Aveling teve a participação no projeto financiada pelos recursos recebidos do Harvard University Lemann Brazil Research Fund.