Marcelo Torres Crônica: “Para onde vamos?”
Era quase meia-noite de domingo, dezesseis do sete de dois mil e dezessete. Estava meio que de ovo virado, na saída do boteco, esse lugar que é sagrado, mas dali ninguém volta rezando credos nem terços — ainda mais quando você está de cara cheia, com umas dez loiras na cabeça, como era o meu caso. Vestia o manto do meu time, o Vitória, que quatro horas antes caíra de quatro a dois para o Palmeiras e batera à porta da zona, a zona de rebaixamento para a segunda divisão.
Chamei então um carro por aplicativo, esse comércio que se multiplica feito coelho — embora esses carros sejam muitíssimos mais fáceis de se pegar do que um coelho. E antes de o veículo chegar, eu via o exato ponto onde ele estava, quanto tempo demoraria para chegar e via o preço da corrida e o nome do prestador do serviço — sua graça vinha a ser Raimundo, que acumulava dez mil e tantas viagens e avaliação de quatro vírgula nove, numa escala de zero a cinco, significando aprovação de 98% entre esse mundaréu de passageiros.
Quando o carro chegou e abri a porta, antes de pôr um pé para dentro, ouvi Raimundo indagar: — Para onde vamos, meu amigo? Não recusei o vocativo, pois vi nas duas palavras uma tentativa dele de ser gentil e agradável. O que me causou estranheza mesmo foi aquele para-onde-vamos, frase que não é uma simples pergunta nem é uma pergunta simples — trata-se, a bem dizer, de uma questão das que mais inquietam a humanidade desde séculos e séculos, sem que se tenha resposta, apenas especulações de poetas e filósofos.
Ora, se ainda fosse o velho serviço de táxi, vá lá, o chofer nunca sabe de antemão o final da corrida, e não tem como adivinhar, então ele pergunta, você informa, tudo certo. Só que o serviço de transporte urbano por aplicativo é outra história, tudo muito objetivo, a coisa mais fácil e prática desse admirável mundo novo das tecnologias. O próprio condutor, assim que aceita a corrida, já vê tudo na tela, inclusive o local de saída e o de chegada. Aliás, o aplicativo sabe não só seu endereço, como seu telefone, seu banco, sua conta, seus cartões, seu CPF — se brincar, eles sabem até seu time de coração.
O pintor francês Gauguin colocou no título de uma de suas obras as perguntas quem somos, de onde viemos e para onde vamos. E quando lhe faziam esta última, ele dizia: “Vamos para perto da senhora morte, uma ave estranha e simples”. De fato, se pensarmos bem, é isto mesmo que ocorre: cada dia que se vive é um dia mais perto dessa ‘ave estranha’, que Ariano Suassuna chamava de Caetana, enquanto Manuel Bandeira a apelidava de Indesejada — quando a Indesejada das gentes chegasse, dura ou caroável, talvez ele sentisse medo, talvez sorrisse, talvez dissesse “alô, iniludível”, e desse jeito a noite podia descer, a noite com seus sortilégios.
Faço uma breve busca virtual e recorto um trecho de Lavoura Arcaica, o belo romance de Raduan Nassar… e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ — não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’.
Lá no dia, em cima do lance, assim que entrei no carro, estava triste como a noite, porém não levantava essas bolas, não passavam pela minha cabeça essas coisas — que surgiram só agorinha, entre a tela e as teclas do computador. No entanto, mesmo que ali na hora eu soubesse e lembrasse desses detalhes, ainda assim não tinha o direito de descontar meu desconcerto na cara do motorista, dizendo-lhe, por exemplo, “vamos para perto da senhora morte, uma ave estranha e simples”, como fazia o famoso pintor francês.
O que falei, na hora, foi que estava voltando para casa, cujo endereço era quadra tal, conjunto tal, lote tal — para que ele conferisse no celular. Mas, ó mundo-mundo-vasto-mundo-se-eu-me-chamasse-Raimundo-seria-uma-rima-não seria-uma-solução, ele sorriu, “estou falando é do nosso Leão da Barra”, disse, virando-se para trás, esticando a camisa bem no exato local do escudo. “Sou Vitória, pô”. Poxa, olha como são as coisas: o time perdera o jogo em campo, eu tinha ficado triste, mas agora ganhava um amigo, baiano e confrade rubro-negro. E o clube não caiu — naquele ano, não.