Marcelo Torres*
Escritor
Não sei se com você, amigo ou a amiga, ocorre esse tipo de situação: de criar uma relação afetiva com certas palavras, a ponto de lembrar como, onde e quando as conheceu. Em 5 de julho de 1982, por exemplo, dia em que o Brasil foi eliminado pela Itália na Copa da Espanha, um menino de 14 anos chorava a derrota do escrete nacional e pela primeira vez teve contato com uma certa palavra.
Naquele dia, no Junco, após encerrada a peleja, o único acertador do bolão — um rapaz que não tava nem aí pro futebol, só queria mesmo era ganhar o seu dinheirinho — passou a ser chamado de comunista. O que é comunista, o menino perguntou baixinho a um homem, que respondeu: comunista é um elemento malvado, fora da lei, anticristo, uma pessoa que é contra o Brasil em tudo-tudo-tudo.
Dias antes, tinha sido, o menino, apresentado à concupiscência — não ao pecado, em si, mas à palavrona. O local era a igreja, domingo de missa, tava sentado na fileira da frente, ao lado do pai e da mãe, dois católicos de nove costados. Quando o padre começou a falar em con-cu-pis-cên-cia dos olhos e con-cu-pis-cên-cia da carne, o menino desatou a rir.
Como a risada não cessava, o moleque precisou sair da igreja e voltar para casa, onde, mais tarde, teve que se explicar ao pai e à mãe. Disse que achara engraçado o jeito como padre tinha falado certa palavra, uma palavra grande. Qual palavra? Con-cu-pis-cên-cia. Pronto, acabou caindo no cinturão do pai, ao som dos sermões da mãe.
Há um vocábulo, porém, que eu tento e não consigo lembrar como o conheci — é outrossim, palavra que eu achava das mais bonitas, sonoras, eloquentes. Ela que, na gramática, tem classe de advérbio, sendo sinônimo de igualmente, bem assim, dessa forma, também, do mesmo modo, do mesmo jeito — em resumo, outro sim.
O que sei é que, não raras vezes, nas redações escolares, tacava um outrossim aqui, um outrossim ali, que era pra dar um tchan no texto — e parece que a tática funcionava, porque as notas não eram lá das piores. No trabalho, então, no Banco do Brasil, ali é que era uma festa, outrossim isso, outrossim aquilo — e parece que deu certo lá também.
Fiquei abalado, contudo, foi quando li uma crônica de Ivan Lessa, sob título Palavras que já eram. No texto, Lessa fala dos verbos, advérbios, adjetivos e substantivos que caíram em desuso, e elabora a própria lista de vocábulos que levaria ao paredão, por considerá-los já obsoletos. Na relação apareciam turba, supimpa, galocha, lambisgoia, borboleta e…. outrossim.
Venho ao site Domínio Público, onde puxo Dom Casmurro. Dou control + F, insiro a palavra, e eis Bentinho dizendo: “Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade”. Pulo pras Memórias Póstumas de Brás Cubas, de novo control + F, digito a palavra, e o defunto-autor narra: “E se não conto a história, dispenso-me outrossim de descrever-lhe a figura”.
Havia ainda outros dois de Machado: no finalzinho de Memorial de Aires, este escreve: “Outrossim, inteirar-me dos seus planos de futuro, até onde ia a viagem, e em que tempo tornaria com a formosa esposa”; e em Esaú e Jacó lê-se que “outrossim, meditava na ausência de vocação diplomática”.
No Evangelho segundo Antônio, o cronista Antônio Maria fala que sempre teve “imenso desejo de escrever outrossim”. Em outro texto, citado por Verissimo, Maria afirma: “Sempre que alguém usa outrossim, a frase é decorada”. O próprio Verissimo dizia que, há mais de 20 anos, tinha pronta uma frase com outrossim — só não havia aparecido a oportunidade. “Quando sentir que vou morrer a usarei — mesmo que a ocasião seja imprópria — para não levá-la entalada”.
Para Verissimo, “outrossim é como ponto e vírgula: poucos sabem como e onde empregá-lo corretamente. Nas poucas vezes em que usei ‘outrossim’ — e ponto e vírgula também — foi com uma certa trepidação, como quem invade a propriedade de alguém sem saber se vai ser corrido pelos cachorros, no caso os guardiões do vernáculo”.
E um dia, achando que fosse morrer, e sem querer levar o advérbio enlatado, o grande cronista resolveu usá-lo num diálogo que adiante reproduzo um trecho:
— Eu só uso ‘outrossim’ domingo.
— Parece palavra de segunda-feira.
— Não. Palavra de segunda-feira é ‘óbice’.
— ‘Ônus’.
— ‘Resquício’.
— ‘Resquício’ é de domingo.
— Não, não. Segunda, no máximo terça.
— Mas ‘outrossim’, francamente.
— Qual é o problema?
— Retira o ‘outrossim’.
— Não retiro.
— …
— É uma ótima palavra.
— …
— Aliás, é uma palavra difícil de usar.
— …
— Não é qualquer um que usa ‘outrossim’.
— …
— Tem que saber a hora certa. Além do dia.
Aquele, porém, que trouxe a maior contribuição para o estudo do outrossim, sem dúvida alguma, foi Graciliano Ramos. Revisor de textos de um jornal, um dia lhe chegou às mãos uma matéria de um jovem repórter. No meio do texto aparecia o glorioso advérbio, o que fez com que o Velho Graça levantasse e bradasse, de papel em punho, para que toda a redação ouvisse:
OUTROSSIM É A PUTA QUE PARIU!