Maria José Rocha Lima
No dia dezenove de abril, Hermógenes Xisto Lima faria aniversário. Hermógenes era primo do meu avô e dizia ter uma dívida com o seu primo, que pagaria acolhendo minha mãe, abandonada pelo marido, e as suas duas filhas, na sua casa para ajudar na nossa educação.
Hermógenes era padrinho de minha irmã Sueli e louquinho por ela, que o chamava de meu Tatinho. As suas filhas a mais velha Angélica, era minha madrinha; e a caçula era madrinha de minha irmã. Hermógenes era um homem muito generoso, criava em torno dele uma rede de ajuda mútua para atender aos parentes pobres. Ele era dono de uma gráfica importante no cenário baiano, da época, possivelmente a maior de Salvador. Também era Maçom e conhecido por ser um homem de fino trato. Naquele tempo se dizia “de uma educação lhaneza”. A sua casa era frequentada pelos políticos baianos desde o vereador de Salvador ao deputado federal, inclusive ministros. Na Bahia, naquela época para um negro galgar aquela situação de prestígio; ser integralmente assimilado pela elite local tinha que ter bala na agulha. Talvez por isso, por ser negro, em casa ou na rua o comportamento de Hermógenes era impecável. Ele sempre se apresentava elegantemente trajado, nunca o vimos num jeito descuidado; falando alto; em algum gesto vulgar, sempre perfeito. Só Sueli, o tirava do sério. Ele sempre contava uma historinha muito singela sobre a minha irmã. Toda noite, uma das suas filhas colocava uma maçã e um copo de água no criado mudo dele, para que ele se servisse quando chegasse das suas atividades noturnas. Certo dia Sueli, bem pequenininha, entrou no quarto e deu uma mordidinha na maçã. No dia seguinte ele perguntou a Sueli: – Minha filha você sabe quem mordeu a minha mação? E ela respondeu: – foi o ratinho meu Tatinho! Todos riam muito…Era muito divertido para nós crianças a Casa do Alvo, como chamávamos, ali, aprendemos muitos ritos de passagem. No Natal, na Páscoa, no aniversário de Hermógenes a casa ficava cheia de presentes: agendas, vinhos raros, doces, cristais, prataria, canetas de marcas; conjuntos de couro com estojos para mesa de trabalho; frutas cristalizadas, que naquela época poderiam ser consideradas exóticas, etc. Nós, as crianças: eu, Sueli e Regininha ficávamos assanhadas para abrir todos aqueles pacotes de presentes. Tudo aquilo, representava o seu prestígio político e benquerença. E muito do que somos, eu e a minha irmã, aprendemos ali. Ficamos umas pobres diferentes. Hermógenes parecia cumprir um desiderato das instituições baianas de um tempo distante, mutuamente as primas pobres. Tradicionalmente na Bahia, os padrinhos eram figuras muito importantes na educação, nas vocações, responsáveis pelas caminhadas dos seus afilhados pela vida, por isso mesmo recomendava-se escolher pessoas da família ou bem próximas. Hermógenes ocupou o lugar do pai, para a minha irmã e também para mim, que usufrui do seu apadrinhamento. E até dizem na Bahia, que eu me tornei parlamentar, porque respirei política, desde a infância, na Rua do Alvo, nº 76. Obrigada , Hermógenes Xisto Lima!
Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação.Foi deputada da Bahia de 1991 a 1999. Fundadora da Casa da Educação Anísio Teixeira. Psicanalista filiada à ABEPP.