(*) Nelson Valente
Embora vinculado ao Partido Social Progressista (PSP), fundado por Ademar de Barros
em 1945, Pedroso Horta rompeu com essa organização partidária durante a campanha
para o governo de São Paulo nas eleições de outubro de 1954, às quais concorriam o
próprio Ademar e Jânio Quadros. Apoiou então este último candidato, lançado pelo
Partido Socialista Brasileiro, (PSB) e pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN) o qual
acabou saindo vitorioso.
Após assumir o governo em 31 de janeiro de 1955, Jânio Quadros contratou Pedroso
Horta para seu patrono em um processo contra o jornalista e empresário Francisco de
Assis Chateaubriand. Ainda durante esse ano, na administração de Lino de Matos na
prefeitura de São Paulo, foi nomeado presidente da Companhia Municipal de
Transportes Coletivos (CMTC), cargo no qual permaneceu após a renúncia desse
prefeito, substituído em 1956 por Vladimir de Toledo Piza.
Ainda em 1956, Pedroso Horta foi contratado, dessa vez por Ademar de Barros, para
defendê-lo em um processo movido por Jânio Quadros, que o acusava de se haver
apossado de uma urna marajoara pertencente ao museu do estado. Condenado pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo, Ademar foi obrigado a deixar o país, retornando
apenas no ano seguinte, quando foi absolvido por unanimidade no Supremo Tribunal
Federal (STF). Candidato à prefeitura de São Paulo em 1957, Pedroso Horta foi
derrotado nas eleições por Ademar. No ano seguinte, entretanto, o governador Jânio
Quadros nomeou-o secretário de Justiça do estado. Um dos principais articuladores da
campanha de Jânio à presidência da República no pleito de outubro de 1960, Pedroso
Horta integrou o grupo responsável pela fundação, em 20 de abril de 1959, do
Movimento Popular Pró-Jânio Quadros (MPJQ), destinado a lançar essa candidatura.
Apoiado pela União Democrática Nacional (UDN) e por partidos menores, Jânio venceu
as eleições presidenciais, e, ao iniciar seu governo em 31 de janeiro de 1961, nomeou
Pedroso Horta ministro da Justiça e Negócios Interiores.
As linhas estavam traçadas entre Jânio e o PSD e Lacerda como um personagem
poderoso. O Presidente da Comissão seria José Maria Alkimin, que chefiou a comissão
interna do PSD, criada por Paulo Pinheiro Chagas, para “examinar” o impeachment de
Jânio Quadros na medida em que Executivo e Legislativo estavam insuportáveis. Jânio
Quadros não tomou a iniciativa de renunciar e sim o Congresso com o impeachment.
Jânio Quadros, percebendo a realidade dos fatos, antecipou ao Parlamento,
surpreendendo a todos com sua renuncia a permitir que seu Ministro da Justiça fosse
levado a sentar-se no banco de réu para ser humilhado ou atingido na sua autoridade.
Segundo Castilho Cabral, – Pedroso Horta não devia ter entregue o pedido de renúncia
de Jânio – acrescentando: – Faltou a Jânio um amigo naquela hora decisiva. Havia
conspiração em marcha contra Jânio. Castilho Cabral procurou imediatamente entrar em
contato com Jânio Quadros, ao tomar conhecimento da renúncia. Acredito não ter
havido pressão militar “imediata” para a renúncia do Presidente Jânio Quadros. A
expressão “imediata” é porque acredito que estava em curso uma vasta conspiração
contra o Presidente.
Um questionamento sempre esteve presente: a renúncia poderia ter sido evitada?
Segundo Castilho Cabral, o ex-Ministro da Justiça, deve ter tido razões próprias para
fazer a entrega imediata do instrumento da renúncia ao Presidente do Congresso. Foi
lamentável que ele não tivesse feito aquilo que qualquer um dos velhos amigos e
companheiros de Jânio fariam: se não rasgar aquele papel, pelo menos retardar a sua
entrega, dando tempo a que as forças janistas se pronunciassem. Considero muito
suspeito o açodamento de Pedroso Horta em cumprir uma instrução sobre a qual tinha o
dever de ouvir os demais Ministros, os Governadores amigos e os líderes da campanha
janista.
Ao ex-Ministro da Justiça, a cuja total incapacidade para a coordenação parlamentar e
direção da política do Governo, atribuo grande parte da catastrófica decisão daquele que
encarnou as esperanças de milhões de brasileiros.
Segundo o Ministro da Justiça de Jânio, Oscar Pedroso Horta, Jânio fez bem em
renunciar.
Diz ele:
– A 31/1/1961, Jânio Quadros assumiu a Presidência da República. Para o povo
brasileiro, a solenidade constituiu um instante de aleluia. Os sinos da esperança
repicaram no coração das multidões.
Uma sinfonia de fé, de confiança nos destinos da Pátria embalou o sono e vivificou o
despertar das almas coletivas, como as suas raças, as suas classes, as suas comunidades
profissionais. Nesta festa de todos, um só homem animoso, porém solitário e triste,
Jânio Quadros. Por quê? Porque só ele sentia, na sua grave plenitude, a irretratabilidade
do compromisso perante o Congresso da Nação. Porque ele não se deslembrava,
também, do prometido ao povo nas muitas ruas do Brasil, do Acre ao Rio Grande do
Sul. Tanto o vinculava o juramento empenhado no Parlamento, quanto obrigavam os
juramentos amarrados, nas praças públicas, com o homem comum. Jânio tinha ciência
de que um abismo separava o Brasil legal do Brasil real. Amainada a febre da disputa
do Poder, silenciados os empuxos de um amor próprio tantas vezes malignamente
ferido, um moço sério causticado, mas não corrompido pela vida, defrontava-se com o
seu estranho destino. Subordinara-se a realizar o impossível, a causar o antagônico, a
harmonizar um pobre Brasil real, lastreado pelos reclamos do subdesenvolvimento,
pelas glórias entrevistas da sua destinação histórica, às imposições, às contingências do
Brasil legal, reverso do primeiro. O que era o Brasil legal? O Brasil legal, juridicamente
obsoleto, tinha a sua máquina administrativa emperrada e protegida por leis que o
eleitoralismo vigorante cedera, uma a uma, aos interesses de classes e grupos. Tinha a
sua estrutura política pulverizada entre os 13 partidos que lhe formavam o Parlamento e
que se subdividiam – como se tantos não bastassem – em alas e tendências,
internamente divorciadas, mas sempre conformadas nos ultimatos ao Executivo.
A essa altura, Jânio deveria meditar a lição de Nietzche, no “Alegre Saber”: – Tu visas a
glória? Fixa-te então no seguinte: renuncia a tempo, espontaneamente, à honra! Jânio,
porém, jamais foi nietzcheano. Buscou conciliar o inconciliável: o real e o legal. Seu
espírito, sensível às influências da filosofia política que fez a grandeza, a decadência e a
agonia da Inglaterra, subordinou-se ao princípio que Aldous Huxley enuncia em “Os
fins e os meios”:
– Os métodos desejáveis para realizar a reforma são os métodos de não-violência.
Assim, a meu ver, desdobraram-se os termos de equações insolutas e insolúveis, as do
Brasil e as de Jânio Quadros. Jânio, o humanista, o liberal socializante, cioso da
soberana independência do Brasil, mas contido pelas peias do País legal, quedou-se
perplexo quando a violência dos baixos interesses pessoais contrariados pôs em xeque a
autoridade conferida por seis milhões de eleitores brasileiros. Voltar as costas ao
juramento constitucional de 31 de janeiro? Trair o povo que tanto nele confiava? O
problema de Jânio era um problema de consciência e, nestes, a ninguém é lícito tocar.
Cada criatura, no poder do que há de mais digno, de mais nobre, no seu espírito e na sua
alma, é juiz soberano para proferir a decisão irrecorrível. A essência da personalidade
humana empenha-se no que ela resolve. Respeitemo-la! O desquite entre a realidade
brasileira e a legalidade brasileira manifestou-se, retumbante, após a renúncia. Tivemos
o caos de um governo constitucional, mas desorientado, senão anárquico. A seguir
tivemos um Brasil espartilhado de chumbo: os atos institucionais, os atos
complementares, a Constituição de 1967. Revivendo eras priscas, fomos surpreendidos
por “éditos”. Feitas as contas com o passado, o presente e futuro, acho que Jânio fez
bem em renunciar.
Ao mesmo questionamento, respondeu: – Não sei. –, o Ministro da Marinha de Jânio,
Almirante Silvio Heck.
– Minha condição de ex-Ministro me impede de responder, como é de meu hábito.
Além disso, até hoje, continuo desconhecendo todas as razões que conduziram o ex-
Presidente a tomar aquela atitude.
Minha consciência indica que servi sempre com lealdade, tendo recebido, na ocasião,
sua renúncia com surpresa e estarrecimento. Muitos aceitam como válida a tese de que
na raiz da renúncia se fixou o desdobramento de um processo revolucionário que ainda
hoje se desenvolve em suas diferentes etapas. Ninguém desconhece que forças terríveis,
aqui e em outros países, têm levado chefes de Estado a gestos de desespero e à morte.
Só o tempo me possibilitará fazer um juízo definitivo. O País sentiu o gesto do ex-
Presidente por reconhecer suas aptidões de administrador e suas inclinações de
estadista.
Já, o Ministro da Saúde, Senador Catete Pinheiro, acha que Jânio não tinha razão.
Diz ele:
– Tenho procurado fugir a comentários sobre a renúncia do Presidente Jânio Quadros,
por considerá-la prejudicial ao Brasil. Sou testemunha da segurança com que ele
enfrentava os problemas brasileiros. O povo o estimava porque via nele o estadista
invulgar. O Presidente Jânio Quadros tinha tudo para vencer as forças adversas, fossem
elas ocultas ou visíveis. A sua renúncia mostra um instante terrível de dúvida – uma
dúvida que não era e não é de Jânio – e não podia nem devia ter assumido as proporções
catastróficas de renúncia. Mesmo porque, o Presidente não se pertencia. Não podia
assumir atitude tão negativa e prejudicial, sem que o povo brasileiro fosse ouvido.
Tenho certeza de que faltou ao grande Presidente uma palavra de chamamento a
ponderação. Em vez de um condutor da carta-renúncia, devia ter aparecido quem lhe
dissesse vigorosamente que a nação choraria a sua perda. Ainda mais se era possível
prever que ele seria alvo dos abutres e dos negocistas, dos corruptos e de todos aqueles
falsos líderes derrotados que, forçosamente se banqueteariam com a renúncia. Esta fez o
Brasil regredir, e levou o povo a esperar por um novo Jânio.
Oscar Pedroso Horta, Ministro da Justiça do governo Jânio Quadros, respondeu a
capítulos e trechos das memórias de Carlos Lacerda e ofereceu a versão janista sobre a
renúncia do Presidente da República.
Disse ele:
– O ex-Governador da Guanabara, ainda tem muito mal a fazer ao Brasil; ainda há,
suponho-o, brasileiros que não foram por ele injuriados, difamados, caluniados; todavia,
restam ideias que não perjurou; princípios com os quais não transigiu; amigos que não
traiu; negócios que não fez; promessas que não quebrou; crueldades que não cometeu.
Há, até palavras que não se mentiu!
A sua autobiografia parece incompleta! Faz 30 anos que Carlos Lacerda aturde o Brasil
com a inigualada megalomania que é a essência do seu ser, essência da qual não se
libertará enquanto lhe sobrar um sopro de vida. E como está se lhe faz, dia a dia, mais
amarga, mais penosa, dada a inexequibilidade das suas ambições, é indispensável que os
deuses, para puni-lo, a prolonguem, largamente!
Que sofra a vida, por muitos anos, este homem, inumano e brilhante, que envenenou a
existência dos melhores homens, seus contemporâneos. Que o fez, quase sempre à toa,
por falsa empostação dos próprios problemas, por desvios de perspectiva, na fixação
dos próprios objetivos, porque sonhou, em seus torvos pesadelos, que aqueles homens
eram as ‘pedras do seu caminho’.
Maltratou-os, pois, tanto se lhe dando que os alcançasse na dignidade, no brio, na honra.
Isto sempre lhe pareceu legítimo e natural. Sequer aceita o reparo de que é contraditório.
Muitos dão-se ao trabalho de colecionar elogios e recomendações de personalidades
que, antes, fulminara com críticas acerbas e malignas.
Carlos Lacerda se desapercebe de que tal estranheza é natural, é inevitável, é inerente à
natureza de todas as criaturas que se deixam conduzir pela lógica e pela ética, ou que
buscam segui-las.
Todas, menos Carlos Lacerda.
Para ele, no particular, quaisquer licenças se evidenciam automaticamente válidas, ainda
que custem suor, sangue e lágrimas a terceiros.
Ele se absolve de tudo, no próprio ato de pecar.
São as “rosas do seu caminho”.
Muito nos falta ler, ouvir e ver no espetáculo singular e imprevisível que é o
comportamento do intemerato ex-Governador.
Os acarinhados de hoje serão as vítimas de amanhã. Os que hoje estraçalham, amanhã
receberão encômios. Tranquilamente, o rol não se acha concluído.
As contradições de Carlos Lacerda e os fatos da vida, por ele, deformados, quem os há
de qualificar é o povo. Não me sinto tranquilo, nem bastante isento, para julgar a um
desafeiçoado meu.
Na verdade, as primeiras dificuldades do Governo Federal de então com o Governo da
Guanabara surgiram diante do escândalo do jogo do bicho, praticado no Estado, em
benefício, total ou parcial, da Fundação Otávio Mangabeira, mas com a intermediação
de Carlos Lacerda.
O rumor preocupou ao Presidente Jânio Quadros e a mim, Ministro da Justiça. Fui ao
Rio, almocei com o Governador no apartamento do amigo Deputado Rafael de Almeida
Magalhães. Interpelei o Governador acerca da atoarda que ecoava nos jornais e sobre os
reflexos nocivos da mesma, para Governos, política e afetivamente identificados, o da
União e o da Guanabara. Tranquilizou-me o Governador:
– ‘Tudo isto não tem importância. Sou um homem julgado pelo Rio de Janeiro. Metade
da população aplaude o que faço e a metade restante condena.’
A desculpa pareceu-me insatisfatória, mas foi a que consegui. Se não gostei dela,
quedou-me a impressão de que Carlos Lacerda também não estimara a minha
curiosidade funcional. Continuamos, porém, em bons termos. Atendi-o, no plano
administrativo. Atendi-o, no terreno político. Isto significa que nomeei, consoante me
pedia, a companheiros seus para postos federais, no Estado. Eles não eram poucos.
Conservo-lhes a lista.
Quanto as ocorrências relativas aos dez últimos dias do Governo Jânio Quadros – 15 de
agosto a 25 de agosto de 1961, Pedroso Horta narra o seguinte:
A 15/8/1961, o Governador Carlos Lacerda bateu à minha porta, em Brasília, cerca das
17 horas. Trazia anotadas, as questões que o ocupavam. Cuidamos delas, a começar
pelas de ordem administrativa: convênio entre a União e a Guanabara, envolvendo o
Serviço de Assistência a Menores; Polícia Aérea, Marítima e de Fronteiras; Serviço de
Censura; Polícia Civil e Militar do Estado. As reivindicações do Governador pareceram
procedentes. Comprometi-me a atendê-las, exceto no que tocava à seleção do
funcionalismo a ser devolvido à União. O Governo almejava guardar o trigo,
entregando-me o joio. Propus-lhe divisão equitativa e nos ajustamos ainda quanto à
minúcia. A fase inicial da conversa tomou-nos quase três horas. Os assuntos eram
intrincados e o interlocutor loquaz.
A seguir, Carlos Lacerda ajuntou que, por indicação do Presidente, carecia falar-me de
política confiou-me que sempre esbarrara em singulares dificuldades para se entender
com Jânio. O Presidente não saberia ouvi-lo, sempre meio desatento, meio apressado,
envolvido por colaboradores e amigos que impossibilitavam confidências.
Contudo, aduziu, na tarde em que nascera a neta de Jânio, desfrutara da companhia
deste, no Palácio das Laranjeiras. Falara longamente com o Presidente e este fora
caloroso, sincero, útil.
Adiantou-me que Jânio deduzira múltiplas críticas à organização legal, administrativa e
política da Nação. Recordada as reformas de base, anunciadas na campanha,
impossíveis de obter de um Congresso no qual dispunha de respaldo incerto, instável,
minoritário. Ao cabo da permuta de impressões, Carlos Lacerda sentira-se afinado com
o Presidente da República. E Jânio, de partida para São Paulo, lhe sugerira que me
procurasse, para prosseguir nas especulações.
O Presidente não me dissera do encontro no Palácio das Laranjeiras. Fê-lo depois. O
Governador indagou a seguir sobre os três Ministros militares. Respondi-lhe que o
Marechal Denys se me afigurava um tranquilo e sólido homem de centro, propenso ao
fortalecimento do Executivo. Quando ao Almirante Silvio Heck as tendências também
me pareciam claras. Relativamente ao Brigadeiro Grün Moss, nada sabia. Constava-me
que era cidadão das relações do Governador.
Tive ciência, depois, que o Governador batera atrás de Heck e de Moss, à cata de
indiscrições sobre conspiratas, mas com total insucesso!
A conversa durou até 22 h com Lacerda, o mais intransigente, o mais ousado inimigo da
política externa do Governo Federal.
Encontrei-me com o Governador a 18 de agosto, analisamos problemas íntimos de
Lacerda e debatemos o propósito, por ele professado, de renunciar ao Governo da
Guanabara. Nada mais.
No dia 19 de agosto, jantava em Brasília com meus amigos Santiago Dantas e José
Aparecido de Oliveira, quando recebi um telefonema do Palácio da Alvorada. Era o
Presidente. Estava no cinema, com alguns amigos, mais Carlos Lacerda (este, pela
manhã, no Palácio das Laranjeiras, em estado de extrema agitação, rogava à Dona Eloá
que lhe obtivesse uma audiência com o Presidente, pois o assunto era gravíssimo. Dona
Eloá não se envolvia em problemas políticos e administrativos do marido, porém,
juntou o seu pedido ao dele para a audiência com o Presidente). Lá estava de malas e
bagagens, encetando uma ‘conversa muito esquisita’, segundo o Presidente.
Jânio, determinava-me que extraísse o Governador do Palácio, com as suas armas e as
suas bagagens. Que o ouvisse, o interpelasse, entendesse. Não havia razão para Lacerda
pernoitar com o Presidente.
Chamei-o ao fone e ele não gostou de trocar um Presidente por um Ministro para
depositário de confidências. Veio ao meu apartamento e esbarrou na decepção de se
encontrar com Santiago Dantas e José Aparecido de Oliveira, aos quais não apreciava.
Conduzi o Governador a um quarto, ofereci-lhe um uísque e ouvi, na sequência, um dos
mais surpreendentes relatos, tecido por revelações surpreendentes.
Lacerda ia renunciar ao Governo da Guanabara! Seu jornal, confiado à administração de
um filho achava-se à beira da falência. O déficit acumulado ficara insolúvel. Os déficits
mensais eram irredutíveis. Ele precisava assumir as responsabilidades do negócio,
liberando o filho. Segundo motivo para renunciar: divergia da política externa de
Jânio… embora Guevara só fosse condecorado no dia seguinte.
Terceiro motivo da renúncia: lutava com terríveis dificuldades na Assembleia
Legislativa do Estado e não podia governar. Quarta razão: professava respeito
reverencial pelo Presidente, prezava-o como pai. Tratava-se do único homem no qual
confiava, mas não lhe conseguia falar, de coração na mão, olhos postos nos olhos. Não
lhe fora dado confessar-se no Palácio, e no dia seguinte, o Presidente rumava para o
Espírito Santo, sem o convidar.
Carlos Lacerda emocionou-me. Raras vezes vi desespero feito de frustrações tão fundas,
tão sentidas, tão lancinantes.
Ponderei ao Lacerda que o Presidente não poderia desembarcar em Vitória, que era
governado por um pessedista, com um udenista a tiracolo. Além disso, do Espírito
Santo, Jânio dirigir-se-ia ao Rio e no Palácio das Laranjeiras, Lacerda dialogaria com
ele o tempo que quisesse. As suas dificuldades com a Assembleia Legislativa da
Guanabara não eram superiores às nossas com o Congresso Nacional. Estávamos
prontos a condividir as questões políticas estaduais. Quanto às suas divergências com a
nossa política externa, elas não nos preocupavam. Ela era polêmica. No que tangia às
finanças do jornal, estava se afogando num copo d” água; se levantasse o nariz
respiraria livremente, salvar-se-ia sem tropeços. Acalmou-se Carlos Lacerda. Sugeri que
voltasse ao Rio e esperasse o Presidente na tarde subsequente. Seria acolhido em
Laranjeiras.
Lacerda se despede, volta ao Palácio para pegar suas malas. Eu telefonei ao Palácio
recomendando que levassem a bagagem do Governador ao portão poupando-lhe
caminhada no parque, noite escura.
Todavia, meia hora transcorrida, Lacerda me telefonou furioso:
– “Agora é que renuncio mesmo. Fui enxotado do Palácio. Puseram minhas malas no
portão do jardim e isto é um desacato a mim e ao Governador da Guanabara. Vou
renunciar!’
Fui ver Lacerda imediatamente no Hotel Nacional e tentei dissuadir o Governador de
renunciar. O dia surgia rubro e belo quando desisti de instar com o Governador.
Eram 7 horas da manhã e voltei ao meu apartamento. Às 7 h 30, apareceu-me um
coronel da Casa Militar do Presidente. Reclamavam-me no palácio. Guevara vinha de
ser condecorado e o Presidente solicitara relatórios. Estava a redigi-los na sala de
Quintanilha Ribeiro quando chegaram ao Palácio: Menezes Côrtes, Rondon Pacheco e
Adauto Cardoso.
Disseram-me que Lacerda, antes de retornar à Guanabara, comunicara a intenção de
renunciar e que as razões da renúncia estavam comigo. Queriam conhecê-las. Respondi
que havia um equívoco. Falei-lhes das dificuldades do Governador na Assembleia
Legislativa, da sua incompatibilidade com a política Exterior. Não lhes mencionei: as
malas e as dificuldades financeiras do jornal do Governador e o seu desejo de ir ao
Espírito Santo com o Presidente.
Saíram retornando hora e meia mais tarde. Adauto Cardoso censurou-me do informe
anterior. Lacerda lhe narrara, pelo telefone, tudo que ocorrera.
Ainda no dia 19 de agosto, fui jantar no apartamento do Senador Benedito Valadares
com o professor Canuto Mendes de Almeida, o Deputado José Aparecido de Oliveira e
nos deu conhecimento prévio do seu livro ‘E a Lua caiu’. Um telefonema nos
interrompeu: era o Deputado Rafael de Almeida Magalhães, que contou os sucessos
ulteriores da “renúncia” do Governador Lacerda. Estória dos apelos de “deixa-disso” e
da sua intenção de não ir às Laranjeiras, a menos que o Presidente o convocasse; pus-me
a cismar. O telefone tocou novamente e era o Chefe da Nação. Convenci-o de convidar
o Governador e ele me atendeu. O Ministro Afonso Arinos levou Carlos Lacerda ao
Palácio das Laranjeiras. O encontro foi cordialíssimo. Narrou-me o Presidente num
segundo telefonema, haver combinado com o Governador a vinda de ambos à Brasília,
com as respectivas esposas, para desfazimento das dúvidas derradeiras.
No dia 20 de agosto, o Presidente e Dona Eloá chegaram sozinhos à Capital. Lacerda e a
esposa não puderam vir. Precisavam aguardar, no Rio, um filho que tornava de uma
primeira viagem ao Exterior. Não tardaria que voassem a Brasília para o diálogo
aprazado.
Na segunda-feira, dia 21, Lacerda estampava editorial, comedido para o seu estilo, mas
bastante hostil, ao Presidente Quadros. Na terça-feira, dia 22, desancava o Governo
pelas colunas do vespertino que deveríamos salvar juntos e o fazia ainda pela televisão.
Na quarta-feira, 23, a dose era dobrada, já agora pela televisão de São Paulo. Para a
quinta-feira, 24, os nossos amigos e o nosso escasso serviço de telecomunicações, este
então a cargo do hoje General Henrique Assunção Cardoso, anunciavam bombas
atômicas.
Lacerda iria complementar a denúncia da conspiração tramada pelo Governo.
E o fez, com a ferocidade usual.
Na madrugada de 25 com a colaboração do José Aparecido de Oliveira, expedi
comunicado do Ministério da Justiça, tranquilizando a Nação e prometendo, sem
tardança, as medidas indispensáveis a pôr cobro e termo a tais explorações.
Na manhã subsequente, o Presidente renunciou!
Entre um Governador que queria renunciar, mas não se animou a fazê-lo, e um
Presidente que renunciou sem pedir que o segurassem, para não o fazer, a Nação
julgará.
Sei que o Presidente Jânio Quadros há de falar um dia. Adianto que terá o meu
depoimento, que terá outros depoimentos, de homens menos suspeitos do eu. Muitos
indagam quando dirigi a palavra ao Lacerda pela última vez. Foi dia 25, antes de
comunicar a renúncia ao Presidente do Senado, Auro Soares de Moura Andrade, por
ordem do Presidente e tendo ao meu lado Pedro Aleixo e Caio Mário da Silva Pereira.
Completada a ligação, Lacerda indagou:
– “É o Horta?”
– “Não, Sr. Governador, é o Ministro da Justiça. O Presidente incumbiu-me de
comunicar à V. Exa. que acaba de renunciar, a fim de que V. Exa. tome as providências
que julgar necessárias e acautele o sossego público.”
Carlos Lacerda tartamudeou:
– “É lamentável, sinto muito.”
Foi tudo.
Comuniquei-me a seguir com os Governadores de São Paulo e de Minas, ambos no
Palácio dos Campos Elíseos e telegraficamente com os Governadores dos demais
Estados e Territórios brasileiros.
Retomando o assunto: jogo do bicho na Guanabara, surgiu um delegado de polícia, em
franco antagonismo com o Governador, formulando-lhe acusações assaz ásperas. O
Governador puniu-o administrativamente. Ambas as autoridades, Governador e
delegado, adotaram a via criminal. O delegado defendeu-se, comprometendo-se a fazer
a prova das suas alegações. Na semana que se seguiu à renúncia do Presidente Quadros,
Lacerda achou vagar e tempo para cancelar a punição administrativa, aposentar o
delegado e, de comum acordo com este, requerer o arquivamento do processo criminal.
Aí está um modelo de vigilância legado aos administradores coevos e pósteros, uma
demonstração da eficiência administrativa guanabarina!
As notas autobiográficas de Lacerda contêm insultos ao Presidente Jânio Quadros, ao
Presidente Castelo Branco, louvores ao Presidente Juscelino Kubitschek e reverenciam
o Presidente Getúlio Vargas e o Presidente João Goulart.
É a química do movimento tendente a popularizar Lacerda, a valorizá-lo politicamente,
na expectativa de que o Presidente Costa e Silva, tolere a ressurreição política do ex-
Governador da Guanabara.
O segredo é de Polichinelo. Lacerda quer chegar à ONU como representante do Brasil.
Do palco internacional ditará regras à vida nacional e o Governo as engole ou sofre o
desgaste de um escândalo extrafronteiras. Aos eventuais parceiros, ele acena com as
vantagens de uma cunha poderosa e, aos cassados, desvalidos, os proscritos que se
satisfaçam com o punhado de lentilhas.
O Presidente Jânio Quadros vem-se recusando a receber como penitente, Lacerda.
Não o faz por guardar rancores pessoais. Não o faz, a despeito dos reiterados empenhos
de amigos comuns, inibido por duas razões singelas. A primeira é a de que o diálogo
pressupõe um mínimo de confiança entre os interlocutores – e Lacerda não alcança esse
grau mínimo. A segunda está em que Lacerda é um demagogo, sedento e faminto de
poder, aspirando à Presidência da República com a mesma ânsia nos pulmões
reclamando oxigênio. E o Presidente Jânio Quadros é um patriota, capaz de renunciar a
essa Presidência da República.
Por que Lacerda exclui, do seu índex, os Presidentes Getúlio Vargas, Juscelino
Kubitschek de Oliveira e João Goulart?
Porque o generoso, o santo, o inesquecível Getúlio, conspurcado pelo Lacerda na sua
vida pública e privada, por ele ferido como cidadão, como homem, como pai é uma das
pedras grandes no caminho de Lacerda.
O sangue inocente e limpo de Getúlio converteu-se na cortina de ferro que separa
Lacerda do povo brasileiro. É preciso que esta cortina desapareça, corroída pela
ferrugem do esquecimento, para que Lacerda sonhe trajar a Faixa Presidencial.
Enquanto a cortina perdurar, as falangetas de Lacerda poderão arranhar aquele adorno,
mas as falanginhas e as falanges não o agarrarão.
As mesmas observações aplicam-se a João Goulart.
E, por que poupar Juscelino?
Porque há pedras no caminho de Lacerda e Juscelino pode ajudar a removê-las.
As pedras são os amigos do Presidente Juscelino, que ele busca deslocar, mas sem
admitir que mentiu, no pretérito, e que se quer redimir no presente, para alcançar no
futuro, o prêmio sonhado pela sua ambição. Com o poder, Lacerda os degolará, os
enforcará, os guilhotinará, um a um, até a terceira geração e declarará, as suas cinzas e
os seus descendentes irremissivelmente infames.
(*) é professor universitário, jornalista e escritor
Volto a dizer: História do Brasil, legítima. Muito, mas imensamente bem escrita, linguagem atraente, madura, uma honra para quem lê.
“Jânio deveria meditar a lição de Nietzche, no “Alegre Saber”: – Tu visas a
glória? Fixa-te então no seguinte: renuncia a tempo, espontaneamente, à honra! Jânio,
porém, jamais foi nietzcheano. Buscou conciliar o inconciliável: o real e o legal. Seu
espírito, sensível às influências da filosofia política que fez a grandeza, a decadência e a
agonia da Inglaterra, subordinou-se ao princípio que Aldous Huxley enuncia em “Os
fins e os meios”:”