Miguel Lucena Filho
Vivíamos, os filhos de Migué Fotogra e Dona Nila, pobrezinhos e simples, um calçado por ano e umas três roupas, lavadas na pedra, sob um pé de manga, pela zelosa mãe de nove filhos, a mulher mais paciente que já conhecemos, a criar os rebentos, cuidar do marido e ainda levar tirrinas na cabeça, todos os dias, para os heróis da agricultura.
O velho Miguel era um misto de fotógrafo e agricultor. Passava a semana na roça e aos sábados e domingos batia até o último instantâneo para garantir o sustento da família. Assim, criou, educou e instruiu todos os filhos, formou quase todos, o que fez com o maior orgulho.
Quando um de nós passava no vestibular, a farra dava no meio da canela. Miguel Lucena saía pelas ruas a anunciar a vitória do filho, que era na verdade a vitória dele e de Dona Emília, e aí convidava a cidade toda para comemorar.
Quando passei no vestibular de Direito, aos 17 anos, a Rua do Cancão viu até bateria de escola de samba – se bem que era a escola de Preto Lira, então namorado de Judite Antas, mas era uma escola. Logo após o resultado, eu já com a cabeça raspada e cheio de carraspana, cheguei em casa e lá estava Migué Fotogra, Emília ao lado, a gritar ao mundo seu mais novo troféu: “Lá vem meu bacharé!”.
Mesmo nos períodos mais difíceis, quando a seca castigava a nossa terra, o velho Migué não deixava a família sem a ceia de Natal. Princesa se enchia de luzes – era a Paris sertaneja -, a igreja matriz, majestosa, com seu relógio tocador e seus sinos dobradores, com o pátio repleto de atrações – rodas-gigantes, bingos, quermesse, jogos, brincadeiras, danças etc. -, era o chamariz para gente de toda a região.
Nas quermesses, além de comer bolo de puba e pão doce e tomar o capilé de João Costa – um tonel de refresco bem docinho, no qual ele enfiava o mesmo caneco que era servido a todos -, nos divertíamos com as matutas da roça no oitão da Igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho.
À meia-noite, como a ouvir o chamamento do chefe Miguel Lucena, corríamos todos para casa e lá encontrávamos Dona Emília, ou Dona Nila, com a mesa posta e repleta de galinhas assadas, arroz branco, farofa e vinho de garrafão. Logo em seguida, chegava o velho Migué, chapéu quebrado na testa, já declamando uns versos depois de umas lapadas de uísque de homem – uísque de homem é Drurys, dizia – , e um grande bolo nas mãos, o bolo que, após a refeição principal, fecharia a celebração do nascimento do Filho de Deus.
Numa madrugada de Natal de 1984, sem bolo e vinho de garrafão, longe de Princesa, mas cercado dos filhos que tanto amou e amado para sempre, o velho Miguel foi encontrar-se com o Filho de Deus. E, apesar da ausência física, o velho Miguel está presente em todas as ceias de todos os seus filhos. Na minha, ele é sempre convidado principal, ao lado de dona Emília, porque eles são o fermento da nossa fartura.