A exploração sofrida por Benga serviu de instrumento para teses racistas da pseudociência evolutiva e da eugenia do século 20
A região onde fica a atual República Democrática do Congo costumava ser uma densa mata tropical, lar de vários povos de culturas ricas e diversificadas. Até que, no fim do século 19, o rei Leopoldo II, da Bélgica, decidiu que queria explorar o local, fundando uma colônia.
A partir daí, começou um verdadeiro pesadelo para as populações locais: o domínio do monarca resultou em açoites, amputações, trabalho forçado, racismo e assassinatos em massa. Fez parte dessa triste realidade Ota Benga, um garoto nascido em 1883, membro do povo Mbuti.
O destino dele seria extremamente cruel: passaria por um massacre, escravidão e depois, no início do século 20, ainda suportaria ser exibido e humilhado em um zoológico em Nova York. A tragédia então terminou de modo ainda mais triste devido aos traumas psicológicos que Ota carregou por toda a vida.
Vida no Estado “Livre” do Congo
Ironicamente, a colônia conquistada por Leopoldo II foi chamada pelos europeus de Estado “Livre” do Congo. Entretanto, como sabemos, não houve nenhuma liberdade — não pelo menos para os povos locais após a chegada dos colonizadores.
Antes do caos, Ota vivia uma vida tranquila em sua comunidade, que se dividia em grupos familiares de 15 a 20 pessoas. Eles eram nômades, movendo-se conforme as oportunidades de caça. Até que eclodiu a guerra, na qual o exército da ocupação belga, Force Publique, estuprou e decapitou muitos rebeldes.
No meio do massacre, o acampamento onde estava a família de Ota Benga foi alvo. Todos morreram, exceto Ota, que só sobreviveu, pois, na ocasião tinha saído para caçar. Pouco tempo depois, comerciantes de escravos o prenderam e o arrastaram para fora da floresta.
Escravidão
O jovem tinha sido levado para se tornar trabalhador agrícola. Em 1904, foi vendido para o empresário americano Samuel Verner. O homem branco queria criar nos Estados Unidos uma exposição racista e pseudocientífica com aqueles considerados “elos perdidos da evolução humana”.
Como resultado, Ota foi exposto na Feira Mundial de St.Louis, nos EUA. No ano seguinte, ele foi levado de volta ao Congo, onde se apaixonou por uma mulher do grupo dos Batwa. Entretanto, a felicidade foi momentânea: a moça morreu após ser picada por uma cobra.
Benga viajou de volta aos Estados Unidos com Verner em 1906. Primeiramente, ele foi exposto no Museu Americano de História Natural, mas o seu “proprietário” não quis mantê-lo no local, pois julgava não estar recebendo o suficiente do administrador da instituição.
Exploração no zoológico
Então, Verner levou Ota Benga até o zoológico do Bronx, onde ele foi colocado dentro de uma jaula com macacos e apresentado como se fosse canibal. O jovem de 23 anos fez parte de uma exposição da New York Anthropological Society, que, como era costume, tinha premissa pseudocientífica — e eugenista. O objetivo era “revelar a evolução humana” por meio de uma “espécie inferior”.
Entre as inúmeras humilhações que o rapaz passou, ele era obrigado a interagir com orangotangos para reforçar a ideia de ser selvagem. Também tinha que mostrar os seus dentes para os visitantes, uma vez que era costume do povo Mbuti que as dentições fossem afiadas.
Em um dia recorde, Benga foi visitado por uma multidão barulhenta de mais de 40 mil pessoas. Algumas o cutucaram nas costelas, enquanto outras apenas riram ao vê-lo assustado. Em legítima defesa, o jovem atingiu vários visitantes. Como resultado, foram necessários três homens para contê-lo, que o arrastaram de volta à casa dos macacos.
Devido a esse acontecimento, o diretor do zoológico, William Temple Hornaday, apresentou uma queixa para Verner. Ele escreveu que “o garoto faz o que bem entende, e é absolutamente impossível controlá-lo”. “Não vejo saída do dilema, a não ser que ele seja levado embora”, redigiu.
Sofrimento inesgotável
Mesmo com as reclamações e o racismo da direção do zoológico, a dor de Ota Benga no local não passou totalmente despercebida. Membros do clero negro local ficaram horrorizados e protestaram contra a exploração do jovem, exigindo a libertação do prisioneiro que vivia com os macacos.
Um dos opositores ao enjaulamento de Benga foi o reverendo Matthew Gilbert, da Igreja Batista Mount Olivet. O religioso escreveu textos de protesto no Jornal The New York Times. Após 20 dias de manifestações, o garoto foi finalmente liberto, ficando sob a custódia de James Gordon, ministro que liderou a acusação para a libertação dele.
O governante passou a administrar a vida de Ota Benga: levou o jovem para um dentista e o matriculou em uma escola segregada para crianças negras. Arrumou também um emprego para Benga em uma fábrica de tabaco local.
Triste fim
No ano de 1914, Ota Benga planejou voltar para a África e abandonar a vida na América do Norte, que ele decidiu que não era para ele. Com o dinheiro que acumulou na fábrica de tabaco, o jovem fez as malas e tentou embarcar para sua terra natal, mas não deu certo.
Começou naquele mesmo ano a Primeira Guerra Mundial e houve a suspensão dos navios transatlânticos. A Bélgica foi ocupada pela Alemanha, causando grande caos no Congo, com o fechamento das entradas e saídas. Sem nunca poder retornar às suas raízes, aos 32 anos, Benga faleceu de modo trágico: foi por meio de um suicídio, no qual uma bala atingiu o seu coração, em 20 de março de 1916.
Fonte: Escravidão, de Laurentino Gomes (2019) e Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, de Hebe Maria Mattos (1999)
Adel Bezerra
Jornalista