*Frutuoso Chaves
Era o cúmulo da modernidade. Veio para substituir o aparelhinho mais antigo de duas placas. Neste caso, o usuário girava o cabo inteiro (com função de parafuso) a fim de juntar ou separar as peças em cujo meio, como num sanduíche, a lâmina de barbear era posta, ou retirada para substituição.
Com a versão mais moderna, a operação tornava-se mais simples. Bastava girar a ponta do cabo e o topo se abria como num passe de mágica. Mas é preciso dizer que ambos os aparelhos já dispensavam a barbearia com suas navalhas.
No Pilar da minha infância, dizia-se que Parcela, o barbeiro, tinha mãos de anjo para um escanhoar perfeito, rápido e indolor. Cadeira reclinada, o freguês recebia camadas de espuma grossa e já lhe vinham ao pescoço o pincel macio e o fio da navalha Solingen, mais alemã do que os contos dos Irmãos Grimm. Perguntem a Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, ou Cinderela. Parcela amolava aquilo quase ao ponto de cortar um cabelo no ar. Era um dos seus momentos de glória. O outro, pós-barba, seria o da aplicação da Aqua Velva para ardores breves e perfumados. Talvez daí venha a antiga expressão: “Cheiroso que só maleta de barbeiro”.
Aquela navalha lhe custara uma fortuna e, desgraçadamente, chegava ao Salão dos Sonhos, reformado com balcão de granito, luzes fortes e espelho grande, quando o infeliz proprietário começava a sofrer a concorrência daqueles aparelhinhos dos infernos.
Os fregueses passaram a sumir, um após outro, à exceção dos mais velhos e endinheirados, dos mais resistentes à mudança de hábitos e dos orgulhosos de bigodes apenas a ele confiados.
Um primo do Recife, com emprego no setor de anúncios do Jornal do Commercio e, assim, com algum conhecimento de marketing, sugeriu-lhe um tabuleiro de damas, um pote de vidro com chicletes e uma mesinha com a Revista do Esporte, a fim de segurar os mais jovens.
A providência foi de pronto acatada até porque, inconsolável, Parcela também já padecia com a redução dos cortes de cabelo, a principal atividade do salão reformado por obra e graça de residentes temporários da pequena Pilar, advindos com os ventos da política. Finalmente, o deputado da área havia conseguido a verba para a ponte sobre o Rio Paraíba, fonte nova de emprego e renda. Ponte concluída, a cidade, sua barbearia e, de resto, suas bodegas logo perderam esse pessoal.
Sobraram os moradores permanentes em meio aos quais uma juventude cada vez mais avessa a barbeiros. Neste caso, não por culpa dos porta-lâminas domésticos, mas dos Beatles. Uma desgraça em cima da outra. Foi quando Parcela, dado a citações em latim, aprendeu mais uma: “O tempora! O mores!”.
O Salão dos Sonhos não durou muito. Foi substituído por duas salinhas pés de chinelo, mais baratas, onde a tesoura e a máquina eram manejadas por mãos menos habilidosas em umas poucas cabeças dispostas ao corte militar. Itabaiana, à distância de 12 quilômetros, ganhava, então, a freguesia mais exigente de Parcela.
Aos sucessores, ele e seu despeito passaram a atribuir a autoria da pergunta matuta que ainda hoje os mais velhos conhecem: “Qué aico, taico, ou qué que muie?”. E mais do que a expressão latina esta última requeria a tradução: “Quer álcool, talco, ou quer que molhe?”.
Não sei se Parcela ainda vivia quando as lâminas modernas aposentaram os aparelhos de metal para acomodação das giletes. Descartáveis, elas surgiram com uma e, depois, duas unidades. “A primeira faz tchan, a segunda faz tchun… E tchan, tchan, tchan!”, dizia a propaganda na tevê. Lembram? Ah, sim, hoje em dia, são três num mesmo cabo. Mas, para quem provou dos serviços do Salão dos Sonhos, estão longe do corte gentil de Parcela.
*Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).