
Miguel Lucena
Na Brasília das superquadras, dos gabinetes envidraçados e das cafeterias gourmet, ainda ecoa um Brasil velho, sujo e cruel. No Riacho Fundo II, uma menina de 11 anos teve a infância rasgada por palavras que ferem mais fundo do que qualquer lâmina. Foi chamada de “preta nojenta” por colegas que, mesmo tão novas, já carregam na mochila o vírus do ódio.
Essa menina, que poderia estar sonhando com bonecas ou se encantando com livros, foi parar no chão da escola, tremendo em pânico, com a alma em frangalhos. Foi preciso chamar o Samu, mas não há ambulância que resgate uma autoestima estraçalhada. O racismo, diferente do que muitos dizem, não está só “lá fora”. Ele habita as piadas de família, o olhar enviesado no elevador, o “elogio” disfarçado, a risada abafada. Ele nos atravessa, nos forma e, se não vigiarmos, nos domina.
Quando uma criança aprende a odiar a cor do outro, o que dizer dos adultos? Quantas vezes deixamos passar, “para não arrumar confusão”? Quantas vezes sorrimos amarelo diante do preconceito, como quem engole veneno?
Essa menina, com seu “cabelo de bucha”, é herdeira de um povo que sobreviveu aos porões dos navios, ao tronco e ao silêncio imposto pelas senzalas modernas. Sua dor expõe o racismo estrutural, aquele que mora em cada esquina, em cada sala de aula, em cada “piadinha inocente”. Não basta dizer “não sou racista”; é preciso ser antirracista, levantar a voz, educar os filhos, reeducar a si mesmo.
A menina vai se levantar. Vai reconstruir o amor-próprio. Mas nós, sociedade, ainda precisamos acordar do nosso sono covarde. Antes que mais crianças desmaiem, antes que mais almas sejam esfareladas.