No aeroporto da maior cidade cazaque, Almaty, funcionários acabaram fugindo depois de manifestantes antigoverno terem entrado no terminal
Protestos de rua se espalharam pelo Cazaquistão nesta quarta-feira (5/1), ganhando escala nacional e também contornos de violência.
No aeroporto da maior cidade cazaque, Almaty, funcionários acabaram fugindo depois de manifestantes antigoverno terem entrado no terminal.
Os protestos começaram em oposição ao aumento no preço dos combustíveis, mas se espalharam e passaram a refletir outras insatisfações da população com a política e o governo.
E a velocidade com a qual a violência ganhou escala causou surpresa, tanto localmente quanto na região da Ásia Central.
Segundo o governo, ao menos oito integrantes das tropas de segurança foram mortos, e centenas ficaram feridos.
A seguir, um resumo do que está acontecendo e do que está em jogo no Cazaquistão:
O que aconteceu?
O protesto começou depois que autoridades da ex-república soviética revogaram limites de preços do gás GLP, usado por muitas pessoas como combustível para carros, e causando aumento nos preços aos consumidores.
Os protestos eclodiram no domingo em apenas uma parte do país, mas já na terça-feira (4/1) a maioria das cidades cazaques registava manifestações em massa e confrontos com a polícia.
Esses confrontos rapidamente se tornaram violentos: a polícia usou gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral contra uma multidão de milhares de pessoas em Almaty.
Centenas delas – tanto manifestantes quanto policiais – ficaram feridas.
Nesta quarta-feira, foi declarado estado de emergência em várias partes do país, enquanto milhares de pessoas continuavam a tomar as ruas. A internet ficou fora do ar em diversos lugares, segundo relatos de moradores.
O presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, prometeu abaixar o preço dos combustíveis para “garantir a estabilidade no país”. Mas manifestantes responderam com a invasão do gabinete do prefeito de Almaty, incendiando o local.
Porque esses protestos são incomuns?
Rico em petróleo e gás, o Cazaquistão é o país mais influente da Ásia Central, responsável por 60% do GLP da região. Também é comumente descrito como um Estado autoritário.
É o nono país de maior território do mundo, mas tem uma população relativamente pequena, de 18,8 milhões de pessoas.
O Cazaquistão declarou independência em 1991, durante o colapso da União Soviética. Foi liderado durante muitos anos por Nursultan Nazarbayev, que se tornou primeiro-ministro ainda em 1984, quando o país era uma república soviética.
Nazarbayev depois foi eleito presidente em uma eleição que, na prática, não teve adversários, e sua liderança foi marcada por elementos de culto à personalidade – estátuas dele foram erguidas pelo país, e uma nova capital foi batizada em sua homenagem.
Nazarbayev só deixou o poder em 2019, em meio a raros protestos antigoverno, que ele tentou conter com sua renúncia.
Ainda assim, indicou seu sucessor, o atual presidente Tokayev, em uma eleição que foi alvo de críticas de observadores internacionais.
Embora não esteja mais no poder, Nazarbayev continua sendo uma figura influente, e analistas afirmam que ele é o alvo principal dos atuais protestos.
Nesses três anos desde sua saída do poder, muito pouco mudou – e muitas pessoas no Cazaquistão se ressentem da ausência de reformas, do baixo padrão de vida e das limitações em liberdades civis.
Kate Mallinson, do centro de estudos Chatham House, disse à BBC Rússia que “Nazarbayev tinha uma espécie de acordo social com a população: as pessoas eram leais ao regime, porque viam melhoras na situação econômica”.
No entanto, agrega, “a partir de 2015, a situação começou a piorar. E, nos últimos dois anos, com a pandemia de covid-19, a taxa de inflação ficou muito alta”, batendo os níveis mais altos dos últimos cinco anos e encarecendo o preço dos alimentos.
A maioria das eleições cazaques são vencidas pelo partido governista, com quase 110% dos votos, e não existe oposição efetiva.
Para muitos cazaques, o aumento do GLP, combustível tradicionalmente barato que é usado no transporte público e privado, foi a última gota – e as pessoas foram às ruas para serem ouvidas.
O que os manifestantes querem?
Apesar de membros do governo de Tokayev terem renunciado em reação aos protestos e do anúncio de que os preços do GLP voltariam a baixar, os manifestantes não dão sinais de que vão sair das ruas.
Depois da experiência com a renúncia de Nazarbayev em 2019, eles se deram conta de que mudanças no governo não necessariamente trazem os resultados desejados.
A cidade de Zhanaozen, no sudoeste do Cazaquistão, se tornou um dos principais epicentros da insatisfação popular.
Ali já haviam ocorrido grandes manifestações laborais em 2011,quando ao menos 14 trabalhadores da indústria petrolífera foram mortos em confronto com a polícia, e mais de cem ficaram feridos.
É em Zhanaozen que ativistas listaram suas demandas: mudanças reais no governo; eleições diretas para cargos locais (atualmente, os governadores regionais são nomeados pelo presidente); retorno à Constituição de 1993 (que limita os poderes e mandatos presidenciais); anistia a manifestantes; permitir que pessoas não ligadas ao regime atual tenham a chance de ascender ao poder.
Não há líderes claros dos protestos. Analistas afirmam que, ao longo de décadas, atos de oposição foram esmagados logo em seus estágios iniciais, e a democracia eleitoral não existe na prática no país.
“Sob condições autoritárias, protestos de rua são uma reação normal da população a medidas econômicas impopulares”, explica à BBC Rússia o cientista político Grigorii Golosov, da Universidade Europeia de São Petersburgo (Rússia).
O que pode acontecer agora?
A situação cazaque vai se tornando cada vez mais volátil, embora boa parte dos protestos tenham ocorrido de maneira pacífica até agora.
Para Alexander Baunov, do Carnegie Centre de Moscou, porém, a interpretação dos protestos no Ocidente está condicionada ao fato de o Cazaquistão não ser um tradicional aliado ocidental – por isso, as manifestações serão vistas como “um levante democrático contra um governo opressivo”.
“Será difícil que líderes ocidentais não apoiem os manifestantes e que as autoridades cazaques não respondam. O mais provável é que os protestos coloquem o Cazaquistão mais perto (da influência) de Moscou no longo prazo”, opina.
Diana Kudaibergenova, pesquisadora na Universidade de Cambridge, vê sinais de que as autoridades cazaques vão tentar reagir aos protestos de modo pacífico.
“Um jeito de por fim a isso pacificamente é o presidente se sentando na mesa de negociação com alguns dos manifestantes e as pessoas sentindo que suas vozes estão sendo representadas”, diz.
Como grande exportador de combustível e minérios, o Cazaquistão costuma levar em consideração a confiança de investidores externos. E a estabilidade política é um fator-chave para preservá-la.
Ao mesmo tempo, parece que muita gente no país está cansada de viver sob a sombra do ex-presidente Nazarbayev e se mostra pronta para lutar por mudanças mais profundas.
E levantes no Cazaquistão sem dúvida reverberam para o restante da região.
A Chancelaria da Rússia emitiu nota expressando esperança em “uma rápida normalização da situação no Cazaquistão por meio do diálogo” e frisou que “trata-se de um assunto interno do Cazaquistão”.
No entanto, já crescem na mídia estatal russa vozes expressando a visão de que os manifestantes cazaques são instigados por “forças do Ocidente”.