No próximo dia 20, EUA encerram quatro anos do governo republicano de Trump, período que provocou repercussões em todo mundo, particularmente no Brasil.
Em menos de 72 horas se encerra nos Estados Unidos o mandato de Donald Trump na presidência do país, no que pode vir a ser chamado pela História de Era Trump. Um período de apenas quatro anos, de janeiro de 2017 a janeiro de 2021, em que o republicano Donald J. Trump comandou a Casa Branca, como o 45º presidente do país.
Na manhã do próximo dia 20, Trump sairá da residência oficial em Washington D.C. e não mais voltará — ao menos pelos próximos quatro anos. A expectativa é que ele siga diretamente para a Flórida, onde tem uma mansão, sem sequer passar pela cerimônia de posse de seu sucessor, o democrata Joe Biden.
Quatro anos podem soar como pouco tempo — Trump perdeu a tentativa de reeleição em novembro de 2020 —, mas o conjunto de políticas públicas e o estilo de comando do principal líder populista de direita do mundo produziram profundos efeitos não só nos EUA como no mundo — e no Brasil, em particular. Ao menos parte dos aspectos da Era Trump devem seguir gerando repercussões, mesmo após a saída do republicano da Casa Branca.
Se não inaugurou o estilo, Trump foi o maior expoente de uma política feita a partir da comunicação rápida e direta com o eleitorado via redes sociais, em termos que muitas vezes contrariavam a liturgia do cargo e a hierarquia do partido.
Não raro ele quebrou regras tácitas da democracia americana, como ao se recusar a conceder sua derrota nas urnas ou ao se abster de participar da posse do sucessor.
Impulsionou ainda notícias falsas e teorias da conspiração junto aos seus quase 90 milhões de seguidores.
Nos estertores de seu mandato, Trump perdeu tais recursos. Suas contas foram definitivamente ou temporariamente suspensas por plataformas como Twitter, Facebook e Instagram. As redes argumentaram que os posts de Trump representavam risco de incitação à violência, já que o presidente chegou a justificar com falsas alegações de fraude eleitoral as cenas de invasão do Capitólio que seus apoiadores protagonizaram no último dia 6.
America First
Já a agenda política de Trump se organizou a partir de dois motes centrais.
O primeiro, “America First”, ou Estados Unidos primeiro, foi o motor para ações tão variadas quanto o protecionismo econômico, que levou à guerra comercial com a China e respingou até em produtos brasileiros, a ruptura com entidades multilaterais, como a Organização Mundial da Saúde, que os EUA largamente financiavam, ou a construção de um muro na fronteira com o México, para barrar a imigração ilegal.
O segundo mote, do governo “da lei e da ordem”, mostrou seus efeitos tanto no elogio a ações policiais eventualmente truculentas — e no desmonte dos mecanismos de punição a policiais abusadores — quanto, na retomada de execuções de prisioneiros federais (a gestão Trump levou a cabo o maior número delas em 120 anos) e no sucesso em emplacar na Suprema Corte e em outros órgãos judiciais do país maiorias conservadoras, que podem reverter decisões históricas como a legalização do aborto no país.
Trump dos trópicos
Mas quatros aspectos da Era Trump são centrais para a relação dos Estados Unidos com o Brasil, especialmente depois que Jair Bolsonaro subiu a rampa do Palácio do Planalto, em janeiro de 2019.
“Não há nenhum outro líder que se espelhe tanto em Trump quanto Bolsonaro”, analisa o americanista Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da FAAP.
De acordo com a brasilianista Amy Erica Smith, professora de ciência política na Universidade de Iowa, a ascensão de Trump ao poder nos EUA, contra todos os prognósticos de políticos e analistas, mostrou ao mundo ocidental que seu estilo personalista e sua agenda fortemente baseada em conservadorismo nos costumes e em nacionalismo tinham viabilidade eleitoral.
“Ele chega ao poder pouco depois da queda de Dilma no Brasil, quando o momento político brasileiro já indicava para um sucesso da direita. Trump forneceu um modelo para Bolsonaro, uma lista de passos sobre como fazer campanha e obter poder. E tudo isso foi muito natural para Bolsonaro”, diz Smith à BBC News Brasil.
A simbiose entre os dois presidentes ficou evidente nos primeiros meses de pandemia. Ambos subestimaram a doença, culparam a China, apostaram em soluções sem eficácia como a cloroquina, jogaram contra medidas de isolamento social que pudessem atrapalhar a economia, entraram em confronto com governadores.
Trump, contudo, apostou fortemente em vacinas, enquanto Bolsonaro não a tornou prioridade em sua gestão e já disse frases de desestímulo ao uso de imunizantes.
Mesmo o roteiro de fraude eleitoral, adotado por Trump nos últimos dois meses, encontra eco no Brasil. Em março de 2020, em viagem a Miami, Bolsonaro disse ter “provas” de que a eleição de 2018 tinha sido roubada e que ele teria vencido em primeiro turno.
Não existe qualquer evidência disso e o presidente brasileiro jamais apresentou as provas que disse ter.
Há uma semana, Bolsonaro afirmou: “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”.
Se as semelhanças entre os líderes fez com que veículos de imprensa internacionais apelidassem Bolsonaro de “Trump dos Trópicos”, vale ressaltar que há, sim, diferenças.
A primeira é que Trump ainda conta com o respaldo de uma máquina partidária robusta como são os republicanos, enquanto Bolsonaro sequer conseguiu criar uma agremiação própria e segue sem legenda.
A segunda é que a base social de Bolsonaro não está consolidada, o perfil de seus apoiadores mudou da classe média e alta para os mais pobres em dois anos e seria exagerado dizer que ele possui um público cativo, como o Trump.
A América Latina vista de cima do muro
Em quatro anos de mandato, Trump esteve uma única vez na América Latina — uma visita a Buenos Aires, em 2018, onde acontecia a reunião do G-20. A escassez de viagens do líder à região, considerada zona de influência tradicional dos americanos, é simbólica do tipo de relação que Trump manteve com o restante do continente em sua gestão.
“Trump só olhou pra América Latina de cima do muro”, afirma Poggio, em uma referência à barreira física que o mandatário prometeu erguer na fronteira com o México. “Para ele, a área só era importante nos temas que diziam respeito diretamente à situação doméstica”.
Durante a campanha de 2016, Trump prometeu endurecer as medidas contra imigrantes ilegais e foi o que fez.
Entre suas políticas, chegou até a, em 2018, estabelecer a separação de pais e filhos que tivessem entrado sem documentos no território americano. Esse foi o destino de pelo menos cinco mil menores de idade – algumas dezenas deles brasileiros. Até hoje, mais de 500 crianças jamais voltaram a ser reunidas a seus pais.
Também passou a forçar solicitantes de asilo a aguardar pelo fim de seu processo no México ou em países da América Central, como a Guatemala, de onde parte deles estava fugindo. E promoveu mutirões de captura de imigrantes irregulares em regiões conhecidas pela presença deles.
Os brasileiros não ficaram imunes às pressões. Contraditoriamente, enquanto Trump levantava o muro e punha em marcha o endurecimento de ações contra migrantes, a quantidade de brasileiros que se arriscava na travessia entre México e EUA explodiu.
Em 2019, o número de brasileiros detidos pelo Serviço de Proteção de Fronteiras e Alfândega dos Estados Unidos superou os 18 mil, um recorde em mais de uma década. E, mesmo com a pandemia, 7,6 mil brasileiros foram pegos ao tentar entrar dessa forma no país em 2020, número quase 5 vezes maior do que o registrado em 2018, quando 1,6 mil cidadãos do Brasil foram apreendidos nas fronteiras.
Diante do aumento do fluxo de brasileiros, a gestão Trump passou a adotar a deportação sumária deles entre 2019 e 2020.
Desde então, mais de 20 aviões fretados pelo governo dos EUA e lotados de brasileiros chegou ao aeroporto de Confins, em Belo Horizonte.
Esse tipo de tratamento aos brasileiros não era aceito pelo Itamaraty desde 2006. O entendimento do órgão, alterado na gestão Bolsonaro, era de que os brasileiros tinham o direito de passar por procedimentos na Justiça imigratória dos EUA para tentar permanecer por lá.
No início de 2020, os EUA convenceram as autoridades mexicanas a receber de volta aqueles brasileiros que atravessassem a fronteira e não aceitassem ser imediatamente deportados. Em vez de esperar pelo processo legal em território americano, como acontecia até então, eles teriam que permanecer por meses no México até a audiência na corte americana.
Por fim, as ações de Trump foram cruciais para o desfecho da crise na Venezuela e a consequente diáspora de quase 6 milhões de venezuelanos.
Com forte apoio das comunidades cubana e venezuelana, fortemente contrárias a governos socialistas, o republicano adotou as mais pesadas sanções econômicas à disposição.
“Trump adotou a linha mais dura de ação e a que tinha menos chance de funcionar. Com isso acabou colaborando para o fortalecimento da posição de Maduro no poder, em vez de facilitar uma transição de regime. O resultado foi a miséria total do país e uma crise humanitária de refugiados em toda região”, diz Smith.
Sem pressão no meio ambiente
Trump assumiu a Casa Branca disposto a lutar contra o que chamou de “agenda anticrescimento”. O termo foi empregado pelo presidente e sua equipe para se referir a regulações ambientais que visavam proteger o meio ambiente e reduzir as emissões americanas de gases do efeito estufa.
Segundo ele, ao criar restrições ao nível de poluição das atividades econômicas, tais medidas cortavam postos de trabalho e reduziam a competitividade de produtos americanos no mercado global.
A mais notória medida de Trump nesse sentido foi tomada em junho de 2017, quando ele anunciou a retirada dos EUA do Acordo de Paris, um tratado internacional que prevê metas de emissões de gás carbônico para os seus diversos membros. Mas não foi a única. Em agosto de 2018, o departamento de transporte e a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos revisaram as metas para uso de combustível fóssil em automóveis estipuladas ainda na gestão Obama.
Se a regra original estabelecia que os veículos teriam que rodar 22 km para cada litro de combustível consumido até 2025, a gestão Trump baixou a exigência para 14,5 km por litro até 2021. A decisão criou conflito legal com Estados como a Califórnia, que têm limites de emissão mais altos.
Além disso, apenas com uma ordem executiva, Trump reduziu drasticamente duas áreas federais de proteção ambiental em Utah, em 2017. As áreas também foram abertas para mineração e extração de petróleo, atividades vedadas antes.
Trump também editou uma medida executiva em que autorizava o aumento em 30% da extração de madeira em parques nacionais, justificando que a medida seria uma forma de reduzir o risco de incêndio ao retirar madeira das florestas, um argumento contestado por ambientalistas.
Ainda na gestão Trump, a Agência de Proteção Ambiental abriu o menor número de processos criminais contra empresas que tenham descumprido a legislação de meio ambiente do país em 30 anos.
A orientação da gestão federal era de primeiro tentar negociar diretamente com as empresas quando alguma irregularidade fosse descoberta em fiscalização, sem necessariamente fazer autuações.
As ações de Trump representaram uma guinada em relação à política do antecessor, Barack Obama.
Obama sabia que o sentimento geral dos americanos era contrário às ações de combate ao aquecimento global quando percebidas como um fardo carregado apenas pelos EUA. Por isso, enquanto implementava medidas ambientais internamente, o presidente americano passou a fazer pressão para que outros países também se comprometessem com metas ambiciosas.
Em seu livro de memórias, Obama menciona ter invadido uma reunião dos Brics, bloco de países composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, durante negociação climática em Copenhague para forçar o compromisso desses países com corte de emissões.
Ao abandonar essa arena e reverter ações domesticamente, Trump deixou de representar uma das principais fontes de pressões globais no tema.
A partir de 2019, movimento parecido passou a acontecer no Brasil. Bolsonaro garantiu que não demarcaria novas terras indígenas, determinou que fiscais ambientais não mais destruíssem tratores e veículos de madeireiros autuados em flagrante em desmatamento ilegal, sugeriu que a Amazônia pegava fogo naturalmente ou por atuação dos indígenas e se posicionou a favor da mineração em áreas protegidas.
A aplicação de multas caiu em mais de 30% na Amazônia e recuou à metade no Pantanal.
Em dezembro, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que entre agosto de 2019 e julho de 2020 a Floresta Amazônica registrou a maior devastação em 12 anos.
“Trump possibilitou o comportamento de Bolsonaro ao não confrontar questões relacionadas à Amazônia, deixando claro que não havia necessidade de se preocupar com pressões e sanções econômicas. É por isso que Bolsonaro está tão preocupado com Biden agora”, diz Smith.
O apoio de Trump se materializou quando os europeus protestaram contra as queimadas na Amazônia em agosto de 2019 e ele deixou claro ao G7 que não endossaria qualquer admoestação pública ao presidente brasileiro por sua condução de política ambiental.
Em nenhum momento a questão foi levantada como uma preocupação ou uma exigência para que os Estados Unidos assinassem o Acordo de Salvaguardas Tecnológico, em 2019, ou o mini acordo comercial com o Brasil em 2020.
Protecionismo à americana
A Era Trump marca o retorno com força do protecionismo ao partido Republicano, em substituição à agenda neoliberal de Ronald Reagan.
Em 2016, a campanha do republicano compreendeu que havia entre trabalhadores fabris americanos, desempregados após a partida da indústria ou a perda de competitividade, um sentimento de abandono por parte de sindicatos e do partido democrata, que também havia abraçado a globalização da produção.
Trump prometeu devolver a eles seus empregos e salários, e com isso ganhou apoio em áreas cruciais como Michigan e Pensilvânia, onde agora acabou derrotado. Uma vez no poder, Trump tentou cumprir as promessas.
“O que vimos é um protecionismo ao estilo americano, cheio de tarifas específicas e barreiras sanitárias, o que põe por terra o discurso do livre comércio”, diz Rafael Ioris, especialista em relações América Latina-EUA da Universidade de Denver, no Colorado.
Ninguém foi mais taxado por Trump do que a China, o que levou a uma guerra comercial entre os dois países.
Ao mesmo tempo, o governo americano precarizou a atuação da Organização Mundial do Comércio (OMC), que perdeu condições de arbitrar disputas entre países.
Ainda no início do mandato do republicano, suas políticas econômicas atingiram o Brasil.
Trump criou uma sobretaxa para aço e alumínio, em uma tentativa de proteger a siderurgia americana. Foram quatro anos de idas e vindas com essa tarifa, colocada em prática sempre que o momento político do republicano exigia, como próximo às eleições de novembro.
A gestão Bolsonaro não protestou abertamente contra as medidas, embora tenha tentado manejá-las nos bastidores, e ainda aumentou a cota de importação para trigo e etanol dos EUA, mesmo sob protestos da indústria sucroalcooleira brasileira.
O Itamaraty justificou a medida dizendo que a concessão abriria portas para uma negociação de maior abertura do mercado americano ao açúcar brasileiro, atualmente taxado em cerca de 140%. Meses mais tarde, nenhum avanço nesse sentido jamais foi anunciado pelo Brasil ou pelos Estados Unidos
“A relação entre os dois países é naturalmente assimétrica, pela diferença de poder econômico de um e de outro. Mas com Trump e Bolsonaro ela ficou ainda mais assimétrica, por conta da aberta subserviência brasileira”, afirma Ioris.
Por BBC