
Miguel Lucena
A recente entrevista da professora Aurora Bernardini à Folha de S. Paulo provocou reações intensas ao afirmar que autores como Annie Ernaux, Elena Ferrante e Itamar Vieira Junior, embora interessantes, não seriam “literatura de verdade”. Para a crítica, a ausência de um estilo singular ou de uma forma inovadora rebaixaria suas obras ao campo da narrativa simples, centrada apenas no conteúdo.
O debate não é novo. A história literária está repleta de disputas sobre o que pode ou não ser chamado de literatura. Já se acusou os modernistas de escreverem “antipoesia”; já se desprezou a prosa de mulheres como “literatura menor”; já se disse que a literatura regionalista era apenas registro sociológico. Curiosamente, muitos dos que foram relegados ao segundo plano acabaram ocupando, com o tempo, o centro do cânone.
Nos anos 1990, vivi algo parecido. Um poeta e letrista tropicalista, folheando meu livro Verso-Menino, teria dito que meus versos não eram poesia. Ao receber a notícia pelo editor, respondi que, na minha terra, versos sem rima — como os que ele próprio escrevia — eram chamados de pensamentos. Se quero elaborar pensamentos, escrevo uma crônica ou um pequeno conto. Quando escrevo poesia, não abdico do ritmo e da musicalidade que herdamos das tradições orais, dos cantadores e das ladainhas.
A polêmica atual e a lembrança daquele episódio se tocam num ponto essencial: quem detém o poder de legitimar o que é literatura? Os críticos acadêmicos? O mercado editorial? Os leitores anônimos que se reconhecem numa narrativa? Ou o próprio tempo, que opera como grande juiz?
A verdade é que a literatura sempre se reinventou no conflito entre forma e conteúdo. Ernaux pode privilegiar a memória pessoal; Ferrante, a experiência feminina; Itamar, o Brasil profundo. Cada um deles amplia fronteiras, ainda que não busque um experimentalismo formal. Do outro lado, a tradição que valoriza a rima, a métrica, a estilização, também é legítima e necessária. Talvez não haja um “verdadeiro” ou “falso” na literatura, mas diferentes modos de traduzir a experiência humana em palavras.
No fim das contas, se o leitor se reconhece, se é tocado, se algo nele se transforma — então talvez já estejamos diante daquilo que, para além das etiquetas, chamamos simplesmente de literatura.