De vez em quando me bate o banzo das lembranças de tempos que o tempo teima em apagar. E revejo a mata imensa, fechada, com árvores enormes e bichos misteriosos. Vejo o ranchinho de palha, o fogão de lenha cavado no formigueiro e ao redor dele Chico Rôla a contar a saga do macaco engolido pelo leão e saido pelo outro lado a mangar da fera.
A espera ao lado do olho d`água abrigava o atento caçador, que com sua lazarina preta acertava o tiro nas juritis, lambus, codornizes e siricoras que iam beber água nas primeiras horas do dia. E o caçador voltava com o bornal cheio de carne para a mistura da semana.
A descida da serra era uma festa, a rua de terra batida tinha cara de mundo, as partidas de futebol no barro de um Cancão ainda virgem faziam a festa da meninada que se contentava com tão pouco, posto que pouco tinha para alimentar a sua fantasia.
A Lagoa lamaçenta recebia os fatos dos bichos mortos no açougue, num tempo que bucho e tripa nada valiam. Os meninos lavavam a bosta dos bodes e dos porcos e levavam o produto de sua labuta para as mães que transformavam os sobejos em quitutes de variados sabores.E a pobreza fazia a festa em torno da mesa farta.
O sol descia o morrro da Cascavel e a difusora anunciava, pela Ave Maria, que dali a pouco haveria projeção no Cine Santa Maria. Era a voz de Frei Terésio chamando Luiz Dedinho para a portaria do cinema
E Luiz, com a cara dura de sempre, derretia o coração ante a visão do menino pidão que queria ver a fita, mas não tinha o dinheiro da entrada. Ele, fingindo uma raiva que estava longe de sentir, mandava o menino entrar ligeiro para o vigilante padre não ver, e o menino corria com os olhos brilhando no escuro do cinema para assistir as lutas dos seus heróis que jamais morriam e a todos matavam.
Por aquela rua imensa os casais passeavam de mãos dadas depois da missa de domingo, subindo e descendo, descendo e subindo, anunciando a felicidade proporcionada pelo amor que começava a aflorar em cada coração.
E depois a rua se enchia de música dos Beatles, dos Incríveis, de Roberto Carlos, de Renato e Seus Blue Caps, seduzindo a todos para uma dança de rosto colado no Bar de Bartolomeu.
Um deles não dançava. Preferia curtir suas saudades fazendo versos em papel de embrulho numa mesa do Bar de Seu Mirô. E como eram belos os poemas do poeta loiro, grandão e falante, o poeta Andrade, o poeta do amor!
Depois das 11 da noite, a rua deserta anunciava o sono dos justos e o acordar dos boêmios com seus sons de serenatas ao luar.
*Tião Lucena
Jornalista