terça-feira, 23/12/25
HomeOpiniãoO olhar que acolhe

O olhar que acolhe

Ilustração

 

 

Zeugma Santos

Um gesto pequeno, quase invisível, interrompe o fluxo dos pensamentos e devolve alguém ao presente.

Saindo da clínica, depois de uma consulta de rotina, o caminho era curto. De Uber, cinco minutos, talvez dez. Ainda assim, a escolha foi ir a pé. Caminhar tem essa utilidade discreta: ajuda a cabeça a se ajeitar quando o dia por dentro está barulhento.

Os pensamentos vinham em fila: o que fazer, o que ficou para trás, o que ainda não foi resolvido. O corpo ia, mas a atenção, por instantes, parecia não ir junto.

A cabeça estava longe. Os olhos, ainda na rua.

Na calçada de um prédio, havia um pequeno grupo: três ou quatro homens e uma mulher com um bebê de poucos meses no colo. A mulher tinha um corpo marcado pelo cansaço, desses que denunciam noites mal dormidas e uma vida que pesa antes do tempo. Ainda assim, o bebê era cuidado com uma delicadeza que não precisava de legenda. Bastava ver o jeito de segurar, de ajeitar a posição, de brincar com calma enquanto ela conversava com os outros.

O caminho seguiria assim, um passo depois do outro, se o corpo não tivesse interrompido.

De repente, a pressão baixou. Não foi dor. Foi um vazio rápido, um desencaixe. A rua pareceu ficar um pouco distante por um instante. O passo diminuiu. A respiração procurou uma volta segura para dentro do peito.

Foi quando ela olhou.

Não falou nada. Apenas um movimento pequeno com a cabeça, para baixo, como quem pergunta sem som: “Está bem?”. A resposta veio do mesmo jeito: um olhar de volta, um “estou” silencioso, mais vontade do que certeza.

Ela percebeu. E percebeu sem invadir, sem expor, sem transformar aquilo em cena. Foi apenas atenção. Simples. Limpa. Suficiente.

A respiração assentou. O corpo voltou. O chão voltou a ser chão. E o caminho continuou.

Quando a cena ficou para trás, ela permaneceu como estava: brincando com o bebê, conversando com os outros, sustentando aquele colo com carinho. Como se aquele aceno também fizesse parte do cuidado, só que estendido, por um segundo, a quem passava.

Mais tarde, veio a palavra “mendigo”. E também do jeito que a rua às vezes pronuncia: “mendingo”. Mas o que ficou não foi a palavra. Foi o gesto. Pequeno. Acolhedor. No instante em que o corpo quase falhou, alguém me trouxe de volta.

E, pensando bem, talvez ali não tenha sido só gentileza. Foi como se Deus me chamasse de volta no meio dos pensamentos. Aquele olhar veio como um recado sem som: “Estou aqui”.

“Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus.” (Salmo 46:10)

VEJA TAMBÉM

Comentar

Please enter your comment!
Please enter your name here

- Publicidade -

- Publicidade -spot_img

RECEBA NOSSA NEWSLETTER

Este campo é necessário

VEJA TAMBÉM