quarta-feira, 12/03/25
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O medo de perder o que não tem

Ilustração/IA

 

Miguel Lucena

Severo mora de aluguel no Sol Nascente, uma comunidade vibrante e lotada, que já ostentou o título de maior favela do Brasil e hoje carrega a pomposa designação de região administrativa do Distrito Federal. Trabalha oito horas por dia, ganha salário mínimo, mais um vale-alimentação modesto e passagens para se deslocar até o serviço. Não é muito, mas é o que sustenta seus dias e suas orações.

O problema é que, segundo o pastor da igreja que frequenta, tudo isso pode acabar de uma hora para outra. O Brasil, diz ele, está à beira do abismo, prestes a virar uma Venezuela, onde os comunistas vão tomar tudo e fechar as igrejas. Severo treme só de imaginar o cenário. Como sobreviveria sem sua fé? E sem seu vale-alimentação? E sem a passagem para o trabalho?

Mas seu medo maior não são os comunistas. O pastor também profetizou catástrofes vindouras, dessas que fazem a Bíblia parecer um boletim meteorológico otimista. Fome, guerra, pragas. O Apocalipse, em suaves prestações. Severo já se imagina sem ter onde morar, sem emprego, sem comida, perdido entre os escombros de um Brasil arruinado.

Foi então que, numa conversa despretensiosa, Soraia Olinda, vizinha e exímia observadora do óbvio, cortou suas aflições com a precisão de um bisturi:

— E tu tens o que para perder, Severo?

Ele piscou, surpreso com a pergunta. Pensou na casa alugada, no salário curto, no vale-alimentação que mal dava para o mês. Soraia sorriu, mordaz:

— Medo de perder a casa que não é tua? O dinheiro que já some no quinto dia útil? Rapaz, nem os comunistas vão se dar o trabalho!

Severo coçou a cabeça. Pela primeira vez, ficou na dúvida se o perigo vinha do socialismo, do apocalipse ou simplesmente do fim do mês.

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