*Frutuoso Chaves
Não me incluo na mais ardorosa legião dos fãs de Roberto Carlos, o aniversariante da segunda-feira, 19 de abril. Do muito que ele gravou (o cara talvez seja dono do maior repertório da canção brasileira), há coisas das quais não gosto. Mas é bom dizer que as guitarras de qualquer procedência me chegaram aos poucos. Não pertenci à parcela dos garotos que, incondicionalmente, amavam os Beatles e os Rolling Stone.
Os episódios trágicos e cruentos do País e do planeta tiveram meu protesto em outro ritmo e tom. Meu inconformismo tinha, no plano musical, a inspiração dos que punham em jogo a sorte e a pele no compasso de um Vandré, de um Chico, de um Zé Keti e, mais para cá, de um Aldir Blanc, aquele da proveitosa parceria com João Bosco. Ambos pariram os versos e as notas dos bêbados e equilibristas da pátria amada mãe gentil, a antítese da “Aquarela”, de Ari Barroso. Quem não lembra? Pois bem, o brado nacional me servia de grito contra a opressão e a injustiça, também, no resto do mundo.
Roberto e os seus não ligavam para isso nem compunham com o balanço, a emoção e a graça da Bossa Nova para falar coisas de amor. Quando mais se aproximou do protesto político não foi além dos caracóis de Caetano, a quem a ditadura despachou, junto com Gil, para o exílio na Inglaterra.
Naquelas velhas tardes de domingo, eu e meus iguais não corríamos à tevê para o aplauso ao roque nacional feito, em seu nascedouro, de três acordes e versos bobos, quando o cipó de boi cantava nos porões.
“Galope”, “Como vai você”, “A distância”, “Falando Sério”, me trariam a admiração que hoje tenho por Roberto na fase da vida em que a maturidade ocasiona a compreensão mais precisa dos cânticos de amor.
“O Divã” é o poema que de fato me apresentou o talento e a grandeza do artista, repito, em sua maturidade. “Relembro bem a festa, o apito e na multidão um grito. O sangue no linho branco, a paz de quem carregava em seus braços quem chorava”. Ele fez, assim, como se não falasse de si mesmo, o relato de um enorme drama pessoal. Temos, por consequência, o tratamento mais brando, menos lacrimoso e, no entanto, poético, profundo e comovente de uma tragédia mal sabida em detalhes por gerações de admiradores.
Roberto expõe, desse modo, o assunto do qual muito evita falar: a perda da perna direita decepada por uma locomotiva, na manhã de 29 de junho de 1947, um domingo de festa na sua Cachoeiro. Tinha, ali, seis anos de idade. Li que seu anjo da guarda, o moço de linho branco, aquele que o conduziu ao hospital a tempo de evitar que a hemorragia o matasse, era bancário e tinha o nome de Renato.
Também, que não gritava, posto que o corte dos nervos pela roda do trem evitava-lhe a dor. “Doutor, cuidado para não sujar muito meu sapato porque ele é novo”, pediu aquele menino, com o pedaço da perna direita apenas seguro pela pele, ao cirurgião Romildo Coelho. A amputação deu-se num ponto abaixo do joelho, providência destinada a permitir ao garoto, com uso de prótese, passos futuros mais desenvoltos. E como foi longe aquele pequeno paciente da Santa Casa.
Os versos seguintes justificam o título “O Divã” dado à peça, aliás, não incluída entre as mais executadas e aplaudidas deste a quem chamam Rei, certamente, pelo desconhecimento do tema.
“Eu venho aqui me deito e falo a você que só escuta, não entende a minha luta. Afinal, de que me queixo, são problemas superados. Mas o meu passado vive em tudo que faço agora. Ele está no meu presente. Essas recordações me matam”.
Parabéns, Roberto.
*Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).