Como pesquisadores flagraram o peixe-leão em águas brasileiras e por que ele é uma praga
Aquilo que muitos pesquisadores temiam que acontecesse, de fato, aconteceu: o peixe-leão invadiu o Brasil. Um estudo publicado por cientistas brasileiros nesta quinta-feira, 3 de junho, confirma a captura recente de três indivíduos adultos da espécie em águas nacionais; um nos recifes de coral de Fernando de Noronha e dois na costa Norte do País, em recifes profundos, localizados abaixo da pluma de água doce do Rio Amazonas.
São poucos peixes, mas que carregam um mau presságio de grandes proporções. O peixe-leão é uma espécie natural do Indo-Pacífico, que chegou ao Caribe no início dos anos 2000 e se espalhou como uma praga pela região. Com sua juba colorida, seus espinhos venenosos e seu apetite insaciável, o peixe de 30 cm de comprimento foi destruindo a biodiversidade local e multiplicando sua população numa velocidade espantosa. Não há um recife caribenho, hoje, que não tenha um desses alienígenas esplendorosos pairando sobre ele, como uma alegoria peçonhenta, esperando para devorar a próxima presa.
Desde que a espécie chegou às ilhas de Trindade e Tobago, no extremo sudeste do Caribe, em 2012, cientistas brasileiros estão alertando para uma provável invasão do território nacional. A primeira vez que o alarme soou foi em maio de 2014, em Arraial do Cabo, na Região dos Lagos fluminense, quando mergulhadores encontraram um peixe-leão de 25 cm pairando sobre um costão rochoso da Prainha, um dos principais destinos turísticos da cidade. O bicho foi capturado por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) e levado para estudos. Dez meses depois, em março de 2015, um segundo peixe-leão foi fotografado em outro ponto de mergulho local, conhecido como Anequim, e capturado onze meses mais tarde, num outro local, chamado Saco das Neves. Desde então, nenhum outro registro, em lugar nenhum do Brasil.
Até hoje não se tem certeza se esses dois peixes de Arraial do Cabo eram indivíduos isolados, soltos no mar por algum aquarista irresponsável, ou se eram, de fato, peixes selvagens, que chegaram à região naturalmente de alguma forma — hipótese pouco provável, considerando os mais de 6 mil km de costa que separam o litoral fluminense do Mar do Caribe. No caso desses três novos registros, porém, os pesquisadores não têm dúvidas de que se trata de uma invasão natural. “A hora de controlar essa invasão é agora”, alerta o biólogo brasileiro Luiz Rocha, da Academia de Ciências da Califórnia, especialista em peixes recifais e coautor do trabalho que descreve os novos registros, na revista Biological Invasions.
O peixe-leão de Noronha foi avistado e capturado por mergulhadores locais em 21 de dezembro de 2020, a 28 metros de profundidade, num ponto conhecido como Laje dos Cabos, no flanco Norte do arquipélago. Segundo Rocha, é possível que se trate de um indivíduo isolado, trazido ao acaso pelas correntes.
Já os peixes da foz do Amazonas, não. “Lá é provável que já haja uma população estabelecida”, avalia Rocha. Os dois peixes-leões foram capturados ocasionalmente por pescadores em alto mar, a cerca de 200 km do litoral do Amapá. O primeiro foi pego numa rede de lagostas, em junho de 2020, a estimados 70 metros de profundidade. Três meses depois, o segundo caiu num manzuá, armadilha usada para capturar animais marinhos, a 100 metros de profundidade.
A pescaria de espécies típicas de recifes a essa distância da costa só é possível graças à existência de uma grande cadeia de recifes profundos, que se estende por mais de 1 mil km ao longo da costa Norte do Brasil, da divisa do Amapá com a Guiana Francesa até a altura de São Luís, no Maranhão. São os chamados “recifes da Amazônia”, cuja existência só foi confirmada cientificamente em 2016. A maioria deles está entre 70 e 220 metros de profundidade, acobertados pela escuridão e por uma espessa pluma de água doce e barrenta que se projeta centenas de quilômetros mar adentro, a partir do estuário do Rio Amazonas.
Essa gigantesca pluma fluvial — reforçada mais ao Norte pela descarga do Rio Orinoco, na Venezuela — atua como uma barreira de água doce entre as províncias oceanográficas do Caribe e do Brasil, já que a maioria das espécies marinhas não consegue atravessá-la. Cientistas já temiam, porém, que o peixe-leão pudesse usar os recifes profundos da Amazônia como uma espécie de túnel subterrâneo para invadir o Brasil. E parece ser exatamente isso o que está acontecendo.
A travessia, hercúlea para qualquer peixe que vive em recifes, pode ser considerada quase um passeio no parque para o peixe-leão. Ele tem todas as características que o tornam um invasor quase imbatível: come de tudo (basicamente qualquer coisa que caiba em sua boca); cresce e se reproduz numa velocidade espantosa; produz uma quantidade imensa de ovos, que se dispersam com facilidade por grandes distâncias; e é extremamente resistente a uma série de condições ambientais adversas, incluindo altas profundidades, baixas temperaturas, baixa luminosidade e baixa salinidade. É um bicho duro de matar e ainda por cima peçonhento: ele tem espinhos venenosos espalhados pelo corpo que injetam uma toxina extremamente dolorosa quando tocados.
“No Caribe o pessoal já jogou a toalha; ninguém tem esperança de erradicar esse bicho mais”, diz o ecólogo brasileiro Osmar Luiz, pesquisador associado da Universidade Charles Darwin, na Austrália, o primeiro autor do trabalho. No Indo-Pacífico, o peixe-leão tem predadores naturais e vive em equilíbrio com as outras espécies nativas. Aqui por essas bandas, não. “As presas não o reconhecem como um predador”, explica Luiz. Para piorar a situação, o peixe-leão não pode ser pescado — ele não morde iscas no anzol e só entra em armadilhas de pesca por engano. O único jeito de removê-lo do ambiente é mergulhando com um arpão na mão e alvejando o bicho, individualmente, um por um. É o que tem sido feito no Caribe, com campanhas periódicas de remoção e a realização de grandes torneios de caça ao lionfish invasor.
“O segredo é matar o bicho logo de cara”, sentencia Rocha. Ainda que não seja possível erradicá-la por completo, a redução da população ajuda a minimizar os estragos ecológicos causados pela espécie — promovendo, assim, uma “erradicação funcional”, como dizem os pesquisadores. Também assinam o trabalho os pesquisadores Sergio Floeter, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Alex Klautau, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Norte (Cepnor).
O fato de nenhum outro peixe-leão ter sido coletado desde dezembro não significa que não haja mais deles por aí, alertam os pesquisadores. Como a espécie sobrevive em águas profundas, é perfeitamente possível que ela esteja se espalhando de forma “silenciosa” pelos recifes da Amazônia, sem ser notada, até que comece a aparecer em águas mais rasas do Nordeste, onde será facilmente detectada. Os pesquisadores só ficaram sabendo desses dois peixes no ano passado graças a um trabalho ocasional de monitoramento da pesca feito pelo Cepnor, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em parceria com pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA).
O caso do primeiro peixe-leão, capturado em junho, aliás, só chegou ao conhecimento dos pesquisadores em novembro, quando o pescador viu a foto de um peixe-leão no celular do engenheiro de pesca Wagner dos Santos, que participa do monitoramento, em colaboração com o biólogo Alexandre Marceniuk. “É muito provável que outros pescadores já tenham capturado peixes-leões também, mas não ficamos sabendo”, aposta Marceniuk (bolsista de capacitação institucional do Museu Goeldi e pesquisador colaborador do Cepnor).
Os cientistas torcem por um cenário menos catastrófico. Como a distância é grande e a Corrente do Brasil flui predominantemente para o Norte, é possível que os peixes-leões não consigam chegar aqui em quantidade suficiente para se estabelecer como uma grande praga, como no Caribe. Mas é preciso ficar de olho, principalmente nas ilhas oceânicas, para impedir que a população cresça de forma descontrolada.
“O impacto nas ilhas pode ser muito maior do que na costa”, diz o pesquisador Carlos Eduardo Leite Ferreira, coordenador do Laboratório de Ecologia e Conservação em Ambientes Recifais (Lecar), da Universidade Federal Fluminense (UFF), que também assina o artigo e vem monitorando a situação do peixe-leão no Brasil desde o primeiro registro em Arraial do Cabo. (A captura do segundo peixe-leão no balneário fluminense também é relatada cientificamente pela primeira vez neste trabalho, apesar de ter sido feita em 2016.)
Em Fernando de Noronha, as sirenes já estão ligadas. A equipe local do ICMBio está desenvolvendo um protocolo oficial de orientações para o monitoramento e manejo do peixe-leão, que será distribuído para todas as unidades de conservação marinha do Brasil; assim como uma série de conteúdos educativos — incluindo panfletos, cartazes e material para divulgação em redes sociais —, que serão distribuídos para operadoras de mergulho, pescadores, guias turísticos e o público em geral.
“A primeira coisa é saber reconhecer o bicho e entender que se trata de uma espécie invasora”, diz a bióloga marinha Clara Buck, pesquisadora associada do Lecar e voluntária de pesquisa do ICMBio em Noronha, que está produzindo o material de identificação da espécie. Uma vez detectado o invasor, a orientação nesse primeiro momento é não mexer com ele, fazer um registro fotográfico, anotar a localização do bicho e avisar o ICMBio o mais rápido possível, para que a remoção seja feita de forma segura e as informações científicas do ocorrido sejam preservadas. “A estratégia de manejo depende de um esforço coletivo”, salienta Clara. Tudo indica, por enquanto, que o peixe-leão encontrado em dezembro era um indivíduo isolado, diz Clara; mas não há como garantir que a espécie já não esteja presente em águas mais profundas do arquipélago, sem ser detectada. A vantagem, em Noronha, é que como há muito turismo de mergulho no local, a chance de uma invasão passar despercebida por muito tempo é praticamente nula.