
Miguel Lucena
Anacleto da Silva não era um homem qualquer. Embora sua função no serviço público se resumisse a carimbar papéis e conferir protocolos, sua mente vagava por campos de batalha invisíveis, onde o destino da civilização dependia de suas ações.
Não havia burocracia que o detivesse quando se tratava da luta pelo bem supremo. Ele se via na linha de frente, montado em um corcel etéreo, espada em punho contra os inimigos da sociedade judaico-cristã. Eram muitos, eram todos. A besta do Apocalipse assumia formas diversas: ora um político progressista, ora um jornalista, ora uma instituição inteira infiltrada pelo mal. Seus olhos encarnados, seu hálito de enxofre, tudo denunciava a conspiração em curso.
Na vida real, Anacleto escrevia cartas. Muitas cartas. Endereçava missivas aos presidentes dos Três Poderes, orientava deputados e senadores na arte de salvar a nação. Sua última grande investida foi uma carta a Donald Trump, recomendando o asilo de um deputado patriota que se exilara nos Estados Unidos. “A história nos cobrará”, dizia ele, em letras maiúsculas, num tom de urgência que, para si mesmo, soava messiânico.
Ele torcera pela Ucrânia, mas agora via Zelensky como um traidor. A Europa se dobrara ao inimigo. No Oriente Médio, para ele, não havia inocentes. Cada idoso e cada criança mortos eram, na sua visão, peças do grande jogo divino.
Mas sua grande revelação veio numa madrugada febril. Em um sonho, ele se viu montado em um dos cavalos do Apocalipse, conduzindo os exércitos celestiais. E, depois, crucificado. Sua morte redimiria a humanidade. Os céus se abriram, trombetas soaram.
Quando despertou, percebeu que ainda estava na repartição. O relógio marcava 9h45. O chefe passava ao lado, indiferente. Sobre sua mesa, um carimbo e uma pilha de papéis.
O destino da civilização poderia esperar até o próximo expediente.