O Racing Club de Avellaneda, da Argentina, e o Real Betis Balompié, o Betis, da Espanha, possuem histórias que se assemelham.
Ambos são centenários: o Racing tem 116; o Betis, 112 anos.
Os dois têm poucos títulos, são clubes intermediários e estão em países cujo futebol é dominado por dois clubes: na Argentina, Boca Juniors e River Plate; na Espanha, Real Madrid e Barcelona.
E se faço essa associação entre os dois é por causa de uma notícia publicada no UOL na segunda-feira, 1º de abril:
Torcedor do Racing leva crânio do avô para comemorar título argentino.
O fato ocorreu no domingo retrasado, quando milhares de torcedores do Racing Club de Avellaneda tomaram o Obelisco, em Buenos Aires, para celebrar o título argentino conquistado pelo clube.
Ocorre que, no meio da multidão, um repórter da TNT Sports, da Argentina, flagrou um inusitado personagem: um torcedor do Racing com uma caveira nas mãos.
O jornalista quis saber do que se tratava.
— É o crânio do meu avô Valentin — informou o neto, Gabriel Aranda, sem esconder o ar de contentamento. — Tirei ele do túmulo para comemorar o título.
— E o seu avô, o que estará pensando? — indagou o repórter.
— Certamente ele está feliz com o título — disse o torcedor. — E deve estar orgulhoso desse meu gesto.
Como um fato puxa outro, a notícia fez lembrar de uma história narrada por Eduardo Galeano no livro Fechado por motivo de futebol.
Corria o ano de 1976 e o escritor uruguaio visitava a cidade de Sevilha, na Espanha, onde era guiado pelo amigo e anfitrião Sixto Martinez.
Sixto obviamente sabia da paixão que o visitante nutria pelo futebol.
E o levou para assistir a um jogo do Real Betis Balompié.
Betis que, naquele ano, vencera, pela primeira vez, a Copa do Rei — 42 anos após seu único título espanhol.
Betis que, naquele ano, eliminara o Milan e fora longe na Recopa, a segunda maior competição europeia à época.
Betis que, naquele mesmo 1976, acabaria rebaixado para a segunda divisão.
Antes do rebaixamento, porém, lá estavam Sixto Martinez e Eduardo Galeano no estádio Benito Villamarín.
Estádio que, seis anos mais tarde, na copa de 1982, será palco de duas brilhantes apresentações da seleção de Telê Santana.
Naquele palco, o escrete canarinho, com Falcão, Sócrates e Zico, encantaria o mundo com vitórias de goleada: 4 a 1 na Escócia e 4 x 0 na Nova Zelândia.
Antes da seleção de Telê, ali estavam Martinez e Galeano, sentados nas arquibancadas.
Lá pelo meio do tempo, o anfitrião olha para os assentos mais acima e localiza um torcedor que ele conhecia apenas de vista e história.
— Está vendo aquele lá de terno segurando uma garrafa no colo?
— Sim, muito elegante — disse Galeano.
— Daqui não dá pra ver, mas você faz ideia do que ele traz naquela garrafa?
— Suponho que seja alguma bebida, uma água, um vinho.
— É o pai dele.
— O quê!?
— O pai morreu, foi cremado e todo jogo o filho traz as cinzas na garrafa.
— Bravo! Um desejo do pai.
— Sim, o último pedido. “Filho: quando eu morrer, quero que você sempre me leve para ver o Betis”.
— Que história, amigo!
— Naquela garrafa vibram as cinzas de um velho torcedor apaixonado.
— Maravilha! Muito bom!
Aqui e ali o futebol tem esse ‘realismo mágico’.
Na Argentina, o neto celebra a alegria de um título com o crânio do avô torcedor.
Na Espanha, um filho leva as cinzas do pai para ver todos os jogos do clube do coração.
É como se rezassem: “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”.
Marcelo Torres é jornalista, baiano, torcedor do Vitória, mora em Brasília. Crônica publicada no Blog do Juca Kfouri em 08 de abril de 2019.
Valeu, meu caro Marcelo, casos inusitados e coincidentemente macabros. Ótimo texto. Abs 👏👏