*Frutuoso Chaves
Confesso que não atinava com o sentido dos versos do hino dedicado à Senhora de Fátima: “A treze de maio, na Cova da Íria”… Perguntava aos meus pequenos botões, naqueles idos do catecismo ministrado pela professora Dapaz, braço direito de Padre Gomes, quem teria sido a pobre Íria, do que teria morrido e o que a santa fora fazer em sua cova. Simplesmente aparecer no Céu? Melhor faria se cuidasse de devolvê-la à família e aos amigos, entre eles, certamente, os três pastorezinhos.
A cautela me impedia a interpelação à catequista com quem menino nenhum queria encrenca. Receava contrariá-la no seu grande momento: o da exaltação, de olhos cerrados, ao milagre da aparição daquela Senhora mais brilhante do que o Sol. Aliás, os pequenos Francisco, Lúcia e Jacinta por pouco não cegaram.
Passou-se um bom tempo até eu entender que, ao invés de uma pessoa de carne e osso, Íria era um lugar, ficava em Portugal e, a tal cova, uma fenda, uma abertura. Nas roças de Pilar o termo também era aplicado, por exemplo, aos buraquinhos na terra para o plantio das sementes de milho, feijão e fava.
Com o passar dos anos, percebi que o hino – cujo refrão, em plenos pulmões (Ave, Ave, Ave Maria), chegava à casa da família Costa, evangélica – retratava um dos fenômenos mais cultuados pela fé católica.
Dos Costa, gente de bem, diga-se que nunca promoveram um instante sequer de contrariedade aos credos da dona Vininha, minha mãe, nem da mãe desta, minha avó Amélia. Embora não fossem carolas e não vivessem aos pés do altar, que ninguém duvidasse, diante delas, da santidade de Maria. Em contrapartida, até arriscavam alguma entoação do “Vencendo vem Jesus”, entreouvido, parede e meia, da voz afinada de Nina, uma das muitas filhas de Seu Severino Costa: “Glória, Glória, Aleluia. Vencendo vem Jesus”.
Mais tarde, quando as primeiras leituras das coisas do mundo me conduziram aos conflitos sangrentos e intermináveis da Irlanda, fiz da divisão do povo irlandês o resultado da intolerância de dois bandos de estúpidos. Afinal, se a minha família e a família vizinha tanto se gostavam, apesar de comungarem crenças diferentes, porque isso não poderia acontecer no resto do planeta? Mal sabia eu que a briga, lá fora, envolvia a Rainha da Inglaterra e a submissão à coroa. Era, antes de tudo, briga por independência.
Mas, a bem da verdade, devo dizer que nem tudo era pacífico no Pilar da minha infância. Certa vez, dona Guajarina, a secretária do prefeito, mandou cortar a luz da Igreja Batista, em dia de festa. Deve assim ter feito por raiva de alguém, posto que nunca foi uma católica fervorosa. Não me recordo de tê-la visto, uma vez sequer, a receber a hóstia cujas sobras eu e o amigo Zeton comíamos nos preparos da dona Auta. Antes de seguirem para a Igreja e as bênçãos de padre Gomes podíamos degustá-las, sim. Uma delícia, desmanchavam na boca.
No jejum da Primeira Comunhão, finda a missa e morto de fome, avancei nos bolos e quitutes da Casa Paroquial sem me aperceber da temperatura do café, fervente. Cuspi tudo de volta e atribuí ao constrangimento algum castigo divino. Teria porventura esquecido de contar algum pecado ao vigário de Pilar? Vá lá saber…
*Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).