A rua era larga, a mais larga da cidade. Tão larga que no meio dela se abrigava um campo de futebol. Campo acidentado, inclinado para um lado, derreado como costumava se dizer. Mas era campo assim mesmo e os jogadores não reclamavam.Também abrigava a matança, enorme, com muros altos a desafiar a meninada que neles subia para ver o espetáculo dos bois morrendo sob as machadadas cruéis de Adão Marchante, o maior matador de bois do lugar.
Era triste o espetáculo, mas aos olhos dos meninos ficava divertido ver o boi sendo puxado pelo cabresto até a parte encimentada e coberta do matadouro. O bicho parecia adivinhar que caminhava para a morte. Fincava os pés no chão, urrava chega a baba descia, lutava com as quatro patas, tentava correr, mas a corda grossa de agave o segurava e as mãos fortes dos marchantes e ajudantes o levavam até a argola de ferro colada no cimento, onde o seu focinho ficava encostado esperando o pior.Vinha, então, o machado erguido por Adão e, com toda a força dos seus poderosos músculos, descia sobre a testa do boi. Ele caía teso, as pernas balançando, a boca aberta, a língua de fora.O ato seguinte era mais cruel ainda: Adão puxava a peixeira de 10 polegadas e enfiava abaixo do pescoço, já chegando no peito. A faca entrava e ao sair, trazia consigo o jorro de sangue que mais parecia água saindo de um cano estourado.E o boi morria aos poucos, perdendo sangue, balançando as patas até parar.Os homens levantavam o corpo inerte e o marchante abria um talho do pescoço até o começo do rabo. Depois cortava a partir das patas até o talho do meio e, ato seguinte, retirava o couro. A meninada via com vivo interesse a carne ainda viva, se tremendo, como se quisesse dizer alguma coisa.O corpo do animal era destroçado a machadadas, a carne cortada e, aberto o bucho, retirava-se o interior, as vísceras, as tripas, o fato.Nesse momento, Eva, a fateira, arrastava tudo para um canto da matança e começava a limpeza. Primeiro do bucho maior, cheio de bosta verde , da cor de capim. As tripas eram lavadas e viradas pelo avesso. Para isso se usava uma vara comprida de marmeleiro. Dali era retirada a “passarinha”, o bofe e o fígado. O restante era jogado num caldeirão cheio de água fervente para escaldar.As sobras, os rebotalhos, o que não poderia ser comido, eram atirados por cima do muro, para as bandas dos tanques de Dona Bezinha, onde os urubus aguardavam aos montes .Era a festa dos meninos da Rua do Cancão. Ou melhor, o começo, porque dali eles partiam para o banho zoadento no paredão do Açude Velho, onde os aguardavam as piabas de lombo escuro que eram pescadas com anzóis de alfinetes e mais tarde torradas no caco com banha de porco e comidas com farinha.
Blog Tião Lucena