
Miguel Lucena
O café fervia na xícara, soltando pequenas espirais de vapor. Eu girava a colher devagar, sem pressa, enquanto a cidade corria lá fora. O barulho de passos na calçada, de buzinas impacientes, de vozes entrecortadas chegava até mim como um fundo musical improvisado.
Foi então que ele puxou conversa. Um sujeito de idade indefinida, com um sorriso satisfeito e um jeito de quem acabara de contar uma boa vantagem.
— Eu me orgulho de dizer, meu senhor, que nunca pus os pés numa delegacia em toda a minha vida!
Ele disse isso com a satisfação de quem ostenta um feito admirável, como se fosse um mérito inquestionável. Eu sorri de canto de boca, tomando um gole do café antes de responder:
— Pois, meu senhor, eu pisei em uma todo dia durante 24 anos!
O rosto dele congelou no ar, como se um vento repentino tivesse virado sua página. Engoliu seco, ajeitou o colarinho, e depois sorriu meio sem jeito.
— Ah, então o senhor…
— Delegado aposentado — completei, pousando a xícara no pires.
Ele riu, uma risada um pouco trêmula, como se tentasse medir as palavras a seguir. Eu o deixei se ajeitar no próprio silêncio, observando-o com a paciência que anos de interrogatórios me ensinaram.
— Bem… é sempre bom evitar esses lugares, não é?
— Depende. Para alguns, evitar pode ser sinal de uma vida honrada. Para outros, é só sorte.
Ele sorriu, mas agora de um jeito mais contido. Talvez repensando algumas histórias que gostava de contar, talvez revendo a lista de méritos que carregava. Pediu outro café, eu fiz o mesmo. E a conversa seguiu, agora em um terreno mais neutro, onde os passados não se mediam, apenas se compartilhavam.