Ilustração
Ariano Suassuna, que veio à capital federal umas dez vezes, sempre a receber dinheiro (cachês mais que justos, diga-se, por suas aulas-espetáculo), falava que nunca tinha visto uma padaria por estas quebradas. O curioso é que, sempre vindo e voltando de avião, ele não notava que uma das mais de mil e tantas padarias da cidade ficava (e ainda fica) no aeroporto — devia ser, talvez, a vontade de dar logo o fora.
Pois este baiano, todo domingo, religiosamente vai uma padaria, a mesma de sempre, e sempre come lá seu pão com ovo e toma seu café com leite. Hoje (06/10/2024), dia de eleições em todos os municípios brasileiros (exceto em Brasília, que é um distrito federal), não mudei minha rotina — só que, desta vez, houve uma novidade e eu, confesso, deixei aflorar minha “quinta-série”, em atos, palavras, omissões e pensamentos.
As três atendentes — Ana, Rita e Carla —, que ficam entre o balcão de pedidos e a cozinha, já me conhecem e me tratam pelo nome, como velho freguês. Hoje, como todo domingo, Rita perguntou “é o de sempre, seu Marcelo?” — eu disse que sim, mas, sem-quê-nem-pra-quê, fiquei ali no balcão, lendo o cardápio de cima abaixo, coisa que nunca havia feito antes. Os nomes dos itens eram todos normais, mas, lá para o final, vi que um item tinha nome para lá de sugestivo: “buraco quente”.
Foi aí que veio o meu lado “quinta-série”, primeiro em pensamentos. Rindo para dentro, disse a mim mesmo que o buraco realmente estava lá embaixo (do menu). E não era um buraquinho qualquer, não, era um “buraco quente”, ainda por cima — está pensando o quê?
Fiquei curioso, é claro. Está certo que, em Brasília, você encontra buraco em tudo que é lugar. O Buraco do Tatu, marco-zero da cidade, fica no cruzamento dos eixos. O Buraco do Jazz é na Praça dos Três Poderes, debaixo do Panteão Nacional. Já o Buraco do Rato fica no Setor Comercial Sul. Então coloquei o dedo bem no “buraco quente” e perguntei:
— Ô, Rita, tem um trem aqui com o nome de “buraco quente”. É isso mesmo?
As três caíram na risada.
— Mas, seu Marcelo — esta agora era Ana, mexendo na chapa e falando. — O senhor não sabe o que é “buraco quente”?
— Não — respondi, no ritmo do riso. — “Buraco quente”, de se vender em padaria, nunca ouvi falar.
— O senhor não sabe o que está perdendo — agora foi a vez de Carla, na segunda chapa, preparando lanche de outro freguês.
Ainda bem que não havia nenhum outro pé de pessoa por perto. A moça do caixa, no guichê, e os demais clientes, nas mesas lá fora, não tinham como ouvir o nosso besteirol.
— Mas o que é, afinal? — perguntei, me roendo de curiosidade.
— É um pão, seu Marcelo — disse Rita, sorrindo, como se tivesse revelando a coisa mais óbvia e ululante do mundo.
— Quer dizer que “buraco quente” é um pão!?
Na época de menino, no Junco, nós falávamos “pão de sal” ou “pão doce”. Depois, em Salvador, onde vivi catorze anos, os nomes dos pães eram “vara” e “cacetinho”. Nas padarias soteropolitanas, alguns atendentes — só aqueles mais saidinhos entre os mais gaiatos — às vezes perguntavam, na esculhambação, “vai levar vara ou cacetinho?”.
Pois hoje Rita brincava de leve, mas explicava:
— É um pão francês recheado de carne moída bem quentinha, uma delícia.
Puxou da gaveta um papel, um panfleto, com imagens ilustrativas de produtos, e lá estava, entre outros lanches e sanduíches, o bendito “buraco quente”.
— É este aqui — ela falou, colocando o fura-bolo, com a unha grande, no “buraco quente”. — Este nome é porque você abre o pão aqui na ponta (apontou com o dedo), e coloca pelo buraco a carne moída, bem quentinha, é uma delícia. O senhor vai querer?
Num milésimo de segundo, refiz um velho ditado, dizendo a mim mesmo, “onde se compra o pão não se come a carne”, mas logo, olhando para os lados, vi que as padarias de hoje em dia vendem é tudo que é coisa — cigarro, isqueiro, cerveja, sorvete, o diabo —, então vendia carne também, carne moída, diga-se, e quente, dentro do pão.
— Vai querer? — ela insistiu.
— Não, não — falei. — Vou ficar com o pão com ovo e o café com leite.
Que, aliás, ficaram prontos, trazidos quentinhos, em bandeja, por Ana, que era só sorriso. Aliás, as três riam que riam. Ah, como é bom trabalhar alegre! Quanto ao tal “buraco quente”, mesmo em dia de eleição, com o Brasil se acabando nas urnas, eu ainda não parei de pensar nesse trem. Domingo, quem sabe…