Marcelo Torres
De quem são os braços da poltrona do meio no avião? Toda pessoa que viaja de “asa dura”, não tem escapatória, se depara com essa dúvida, mesmo que sempre zele pela política da boa vizinhança e nunca faça questão do encosto. Mas um texto publicado hoje na Folha de S. Paulo, sobre dicas de viagem, esclarece este e outros pontos interessantes. De acordo com a matéria “Etiqueta no voo: as 12 regras segundo uma comissária”, o passageiro do meio é que “tem direito aos dois apoios de braço”.
Não se trata de cláusula contratual, tampouco artigo de lei e muito menos norma do Ministério dos Transportes. É simplesmente uma regra de etiqueta social da aviação civil internacional. Essa cortesia seria, por assim dizer, uma espécie de consolo, de recompensa pelo fato de o viajante do assento central ter ficado em posição desvantajosa, ‘espremido’ entre outros dois passageiros, não tendo a visão da janela nem o acesso livre para o corredor.
O assunto faz lembrar uma palestra feita pelo escritor gaúcho Moacyr Scliar na calçada de um açougue em Brasília, em 2010. Scliar foi imortal da Academia Brasileira de Letras, publicou cerca de 40 livros, nos mais diferentes gêneros literários, e faleceu em 2011. Na conversa com o público, o escritor contou muitas histórias curiosas e engraçadas, inclusive essa sobre os braços da poltrona do meio no avião.
O autor de O exército de um homem só contou que, assim que se sentou no assento da janela e afivelou o cinto, sentiu o cheiro de conflito no ar. Isso porque, antes de o avião decolar, a mulher ao lado abriu o jornal, um jornal bem grande, desses com mil matérias, artigos e reportagens — e seus cotovelos naturalmente se apoiaram nos dois braços da poltrona intermédia.
Scliar também havia levado um jornal, um jornal igualmente grande, afinal era leitor dos diários, inclusive tinha coluna semanal em alguns deles. Naquele momento, porém, optou por não lê-lo, sequer abri-lo, folheá-lo por alto — não havia espaço suficiente para abrir os braços, o encosto da direita já estava ocupado e mesmo que abrisse o jornal naquele instante, ela acharia que ele estava a imitá-la descaradamente.
Os gaúchos costumam dizer que não está morto quem peleia — e tempo era o que não faltava para pelear. Scliar adotou então uma estratégia para passar à vizinha a falsa ilusão de vitória — reclinou a poltrona, abriu a boca e fechou os olhos. Cuidou, ainda, de deixar um fiapinho de olho aberto, para ficar atento aos movimentos dela, que parecia estar concentrada por inteiro na leitura.
Após dez ou quinze minutos de quietude entre ambos os lados, Scliar, não sem algum receio, fez uma tentativa um tanto arriscada — desceu o cotovelo devagarinho até o encosto, como se fosse um ato involuntário de alguém dormindo, e passou a disputar o reduzido espaço com a vizinha, torcendo como nunca por uma turbulência de arrumação. E realmente a aeronave atravessou uma nuvem que provocou uma bela instabilidade. Com os olhos fechados, ele se valeu do balanço para empurrar o braço dela — que não revidou, continuou a ler, mesmo com o cotovelo descaindo para fora do espaldar. Aquela contrição dela, ele pensou, era estratégica, certamente estava tramando em silêncio algum jeito de vingança. De toda sorte, fosse o que fosse, Scliar seguia firme, não abriria mão, nem braço, nem cotovelo.
Mas não existe peleja sem percalço, sempre aparece um porém, e esse porém foi que lhe veio a vontade de urinar, um aperto danado na bexiga. E agora, o que fazer? Se se levantasse, e fosse ao toalete, pronto, estava perdida a batalha. Se ficasse, correria sério risco de ensopar as calças. Passou um tempo, uma eternidade, naquela tensão. Até que o chefe de cabine anunciou no sistema de som que dentro de instantes iriam pousar no Aeroporto Fulano de Tal, pedindo a todos que fechassem sua mesinha e reclinassem a poltrona para a posição vertical. Scliar abriu os olhos. A vizinha fechou e dobrou o jornal, cruzou as mãos sobre o papelório e virou-se para ele:
— Sabe que dia é hoje?
— Hoje é domingo, pé de cachimbo — disse ele, com seu humor sutil.
— Estou perguntando o que se comemora hoje.
— Não sei.
— Meu amor, hoje é aniversário do nosso casamento!
— Ah, sim! Claro!
— Trinta e três anos de casados!
A plateia da palestra, na calçada do açougue, se esbaldava em gargalhadas, e Scliar completava as palavras de sua esposa, dona Judith: “…trinta e três anos partilhando sonhos, angústias, conquistas e também uns braços de poltrona em aviões”.