Maria José Rocha Lima[1]
Querida prima Regininha,
Você se lembra do Ano Novo da nossa infância? Durante anos e anos, a festa, no Alvo, era um verdadeiro rito, constituído de uma série de procedimentos e gestos simbólicos, que se repetiam, anos após anos, manifestando um desejo, quase religioso, de garantir sorte no Ano Novo.
A casa era lindamente decorada; vestíamos roupa branca; as comidas eram diferentes das do Natal; na vitrola, tocavam os long plays de Armstrong, Ray Charles, Nat King Cole, Maysa, Dolores Duran, João Gilberto, Miltinho, Alaíde Costa, Vinícius de Morais, Antonio Carlos Jobim e Lupcínio Rodrigues, entre outros.
Cedo da noite, autoridades baianas, como o ministro Carlos Coqueijo e os deputados João Martins e Wilson Lims, visitavam a casa do Alvo, do nosso querido Hermógenes Xisto Lima, nosso primo.
Todo ano, minha irmã Sueli, que era a mascote da casa, encerrava as comemorações de 31 de dezembro. Esse ritual se repetiu desde a primeira infância dela e nossa; muito pequena, ela o realizava com a ajuda do seu “Tatinho”, como ela chamava o seu padrinho Hermógenes Lima. O padrinho a conduzia até um local da varanda, para que ela tirasse da parede a velha “folinha” (como chamávamos popularmente o calendário, na Bahia), e, sob discretos aplausos, ela colocava o calendário do Ano Novo.
Nesse exato momento, ouviam – se os sinos badalando e os fogos estourando no Adro da Igreja da Saúde, para os lados da Igreja da Catedral, do Pelourinho, da Ladeira do Carmo e da Baixa dos Sapateiros.
Os adultos tomavam champanhe em taças bonitas, e nós, as crianças, tomávamos guaraná champanhe e comíamos à vontade, sempre servidas pelo garçom, castanhas e outras sementes raras no Brasil, naquela época, e os deliciosos brigadeiros e bons-bocados, feitos delicadamente por Georgina, atualmente juíza aposentada. Só naquele dia, era possível comer desregradamente. Os adultos conversavam distraídos e não viam o quanto nos empanturrávamos, não raro ficávamos com a barriga lustrosa, como aconteceu com a minha irmã Sueli, certa vez! Contentes, íamos para a cama, saboreando a festa e sem planos para o Ano Novo, talvez por isso tão contentes!
Fomos umas meninas pobres, mas ricas pela sorte. Encontramos aquelas primas cultas, generosas, de bem com a vida e bem de vida, que engrandeceram as nossas infâncias!
[1] Maria José Rocha Lima é mestre em educação pela Universidade Federal da Bahia e doutora em Psicanálise. Foi Deputada de 1991 a 1999. Presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. Diretora da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise-ABEPP-. Soroptimist International SI Brasília Sudoeste. Sócia Benemérita da Hora da Criança – Bahia.